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terça-feira, 28 de setembro de 2010

FERREIRA GULLAR: POEMAS, POESIA, BIOGRAFIA
























sb: série poetas


A poesia de Ferreira Gullar (São Luís do Maranhão, Brasil, 10 de Setembro de 1930, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta) assume-se dentro das palavras que a suportam, numa espécie de meditação do acaso – acaso este que também medita e enforma a atenção de uma “flagrância” de impulsos, gritos, e negações conscientes. Os versos raramente arrefecem, embora o poema de Gullar seja por vezes composto por fragmentos, pequenas peças, contudo com um íman que as puxa, aproxima, cada qual com a sua manifestação poética autónoma, correndo e concorrendo para o todo da coerência e do impacto. Aqui, a inspiração parece fundar-se numa outra, representativa desse homem do quotidiano, desse Ferreira Gullar mais perto de 1930 e de São Luís do Maranhão. Veja-se,  a este respeito, mas abaixo, o poema PRIMEIROS ANOS, escrito em 1975, em Buenos Aires, poema em que se percebe a realidade brasileira de forma muito sentidamente autobiográfica, aliada ao que lhe sobrou do neoconcretismo (que fundou com autores como Lygia Clark e Hélio Oiticica, grupo que viria a abandonar nos anos 60), movimento esse que surge por oposição ao concretismo puro, que faz da arte geometria pura e inanimação. Pelo contrário, no neoconcretismo de Ferreira Gullar o objecto artístico adquire dimensão humana, participando e sendo passível de observação subjectiva, precisamente porque aqui ele é expressivo e digno de um grande campo de interpretação. É nesse contexto neoconcretista que o poeta se insere, explorando o silêncio e as suas múltiplas partículas, a curiosidade do primeiro espectador de um tempo em metamorfose, a intensificação do consciente pronunciado. Uma grande parte da sua obra poética é acessível ao grande (termo que na poesia deveria sempre vir entre aspas) público. As palavras e as ideias não são, em geral, intelectualizadas, possuindo a estrutura poemática um efeito directo e não menos forte, suprimindo habilmente as barreiras que a linguagem por vezes impõe. E isto, claro, sem ignorar as imagens, comparações e metáforas que essa poesia nos oferece, muitas delas ligadas ao físico e ao palpável, o que acaba por ser, eu diria, uma marca da poesia de Ferreira Gullar. Em certos poemas o aspecto "visualístico" assume uma importância bem medida, consubstanciado na métrica dos versos e sua inserção específica no confronto com o resto do texto, buscando a tradução da harmonia do momento, o movimento de transformação, a dialéctica dos dias. Tendo publicado 16 livros de poesia inédita, foi recentemente galardoado com o Prémio Camões 2010.

Poemas seleccionados:


PRIMEIROS ANOS

Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas .
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

*

NÃO HÁ VAGAS


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

            O poema, senhores,
            não fede
            nem cheira

*
.
POEMA

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
                                 se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
          bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
        morrem comigo.

Ou não:
       o sol voltará a marcar
       este mesmo ponto do assoalho
       onde esteve meu pé;
                                     deste quarto
       ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
           uma nova cidade
           surgirá de dentro desta
           como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

*

NO CORPO

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente. 

*

MADRUGADA

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes

*

EXTRAVIO

Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.

*

Bibliografia (fonte: wilipedia)

Poesia
  • Um pouco acima do chão, 1949
  • A luta corporal, 1954
  • Poemas, 1958
  • João Boa-Morte, cabra marcado para morrer (cordel), 1962
  • Quem matou Aparecida? (cordel), 1962
  • A luta corporal e novos poemas, 1966
  • História de um valente, (cordel; na clandestinidade, como João Salgueiro), 1966
  • Por você por mim, 1968
  • Dentro da noite veloz, 1975
  • Poema sujo, (onde localiza-se a letra de Trenzinho do Caipira) 1976
  • Na vertigem do dia, 1980
  • Crime na flora ou Ordem e progresso, 1986
  • Barulhos, 1987
  • O formigueiro, 1991
  • Muitas vozes, 1999
  • Em alguma parte alguma, 2010
Antologias
  • Antologia poética, 1977
  • Toda poesia, 1980
  • Ferreira Gullar - seleção de Beth Brait, 1981
  • Os melhores poemas de Ferreira Gullar - seleção de Alfredo Bosi, 1983
  • Poemas escolhidos, 1989
Contos e crônicas
  • Gamação, 1996
  • Cidades inventadas, 1997
  • Resmungos, 2007
Teatro
  • Um rubi no umbigo, 1979
Crônicas
  • A estranha vida banal, 1989
  • O menino e o arco-íris, 2001
Memórias
  • Rabo de foguete - Os anos de exílio, 1998
Biografia
Ensaios
  • Teoria do não-objeto, 1959
  • Cultura posta em questão, 1965
  • Vanguarda e subdesenvolvimento, 1969
  • Augusto do Anjos ou Vida e morte nordestina, 1977
  • Tentativa de compreensão: arte concreta, arte neoconcreta - Uma contribuição brasileira, 1977
  • Uma luz no chão, 1978
  • Sobre arte, 1983
  • Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta, 1985
  • Indagações de hoje, 1989
  • Argumentação contra a morte da arte, 1993
  • O Grupo Frente e a reação neoconcreta, 1998
  • Cultura posta em questão/Vanguarda e subdesenvolvimento, 2002
  • Rembrandt, 2002
  • Relâmpagos, 2003 
Artigo escrito por Sylvia Beirute

2 comentários:

  1. Maravilhoso!

    Ferreira Gullart, que cruzo sempre nas ruas de Copacabana, Ipanema e Leblon, é um poeta que admiro. Tenho seus livros, e sempre releio!

    Excelente escolha!

    Beijos

    Mirze

    ResponderEliminar
  2. Segundo creio, a editora Babel, reeditou o "Poema sujo" de Ferreira Gular. Já o procurei, mas não consegui apanhar um que seja.
    Jorge Manuel Brasil Mesquita
    Lisboa, 28/09/2010

    ResponderEliminar