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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

FERNANDO ESTEVES PINTO - POEMAS, POESIA, ANÁLISE CRÍTICA, BIOGRAFIA

























sb: série poetas

FERNANDO ESTEVES PINTO

A poesia de Fernando Esteves Pinto (Cascais, 1961), poeta e romancista que reside no Algarve há já longos anos, constrói-se a partir de listas de (im)possibilidades, de temáticas de investigação íntima, de ambientes que dependem de outros, encontrando-se, estes e aqueles, numa relação de tensão, de benefícios e malefícios. Os poemas partem de um lume brando de ideias, que se intensifica até ao seu final, pela digestão, pelo leitor, das interligações dos fragmentos das cenas e das ideias que vão levando o poema até à sua gravidade absoluta, até à instauração do seu sacrifício emocional. Este último aspecto parece-me crucial na compreensão destes poemas. Fernando Esteves Pinto é um daqueles poetas que eu apelido de "poetas emocionais por omissão", ou seja, a linguagem escolhida (dentro da qual se integra toda a forma e a opção de palavras) não conduz por si só qualquer emoção quente. Pelo contrário, dá-se a exploração do vazio da existência, da ausência de um íntimo que de imediato faz avançar o sangue. Dá-se pois uma certa reflexividade dentro da linguagem e das ideias que ela suporta, sendo que as emoções são diferidas, adiadas para o momento da absorção de todo o espaço poético. É ao leitor que cabe compor a emoção depois de recebido o bolo frio, seguindo as pistas que o poeta deixa, os caminhos, nunca em linha recta, que ele dispõe sobre, e entre, o texto, numa sobriedade que dilui o verdadeiro no ficcional, o paradoxo na razão pura mas completa, a projecção da metáfora nas inscrições de memória. É notável este Criança Com língua de Fora (inédito, com reprodução integral), que em muito representa estas notas: "Este sou eu. / Venho para desafiar as leis dos homens / E dos animais. / Guardo da infância diálogos inacabados. / Imagens que se apagam na observação do que serei. / Estas são as minhas máscaras: / Apago o rosto e esqueço o corpo. / A infância é um animal de estimação. / Um animal que cresce comigo na incerteza e no medo. / Uma imagem sem fim: o medo. / A mutilação dos corpos é uma vingança. / São brincadeiras humanas à beira da destruição. / O meu pensamento animal / por tudo o que é humano."
Este texto minucioso é uma espécie de auto-evasão, subversão do ser completo para que a renovação se realize numa outra fórmula, noutra proposta, num novo conceito de esquecimento próximo do esquecimento parcial de uma criança, um animal ainda não socializado, não normalizado para os padrões que vigoram na sociedade massificada dos dias de hoje. O existencialismo é transversal a toda a poesia deste poeta, surgindo como uma condição de acção do «eu poético», condição-obediência a um ideal de vida sempre em ruptura. E esta ruptura prende-se com a necessidade de mudança, de descoberta, de ver o que está por detrás do silêncio e, em última instância, por detrás das próprias palavras enquanto meio de comunicação entre duas pessoas, dois mundos, ou dois inevitáveis nadas. A matéria poética de Esteves Pinto, no seu substrato mais narrativo, tem pontos de ligação com outros poetas de cuja obra aqui tenho falado (Gertrude Stein, Leonard Cohen, Samuel Beckett, etc), poetas por vezes próximos daquilo a que chamo de extrapoesia, sendo certo que António Ramos Rosa (Faro, 1924) parece ser a mais forte influência na obra poética do autor.

Poesia seleccionada:

Ellington sempre me parecera nervoso.
O mesmo acontecia com os nossos jogos psicológicos.
Havia na família uma moldura diferente
atribuída a cada sentimento.
Depois de nos degolarmos na sala a pergunta era esta:
que moldura sentimos que faça parte do nosso espírito?
Eu dizia tristeza e murmurava sempre tristeza
e o coração do pai abandonava-nos com vergonha
a mãe enrolava as mãos a segurar o amor
e eu adormecia em delírio e despertava sempre em delírio.
O jogo da moldura tinha a vantagem da incompreensão.
Numa família há os realizadores de molduras
e os que sentem a realização da matéria emocional.
As mais belas resoluções eram feitas
na presença de Ellington.
Improviso ambiental familiar.

Fernando Esteves Pinto
em Área Afectada 
ed: Temas Originais, 2010
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*
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Uma desordem, senhor Ellington.
Não vou ignorar que és uma imagem a perfurar-me a mente
uma capacidade da razão em sentir uma música com maus humores
verdades de natureza agressiva soavam em ambientes familiares
por vezes era excessivo o ódio que a melodia se refugiava no coração.
Frequentávamos uma sala impregnada de dúvidas
onde a arte só era entendida pelo sofredor.

Entre a voz maternal e o dilema espumoso de Ellington
a atenção é o meu sacrifício.

Pensamento sinuoso este bocejo musical:
que perigo me leva a abandonar uma palavra?
que palavra me orienta para um som chicoteado?
que chicote volteia riscando na consciência uma mão musical?
Ellington é brutal e pavoroso como o sol
através dos vidros em dia de educação.
Oiço a voz do pai: as pedras da casa a caírem em cortinas
diante dos meus olhos
a solidez audível da emoção escondida no tempo.
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Fernando Esteves Pinto
em Área Afectada 
ed: Temas Originais, 2010
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*
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Apoderava-se das minhas palavras
como se fossem uma toalha do seu rosto
alguns utensílios reservados para a sua vida.
Eu escrevia casa e a casa teria de ser a defesa do nosso amor.
Eu escrevia cama e a cama transformava-se num jogo de silêncio.
Vivia por trás da minha escrita
como se preenchesse a alma de tudo o que não entendia.
Queria que eu mobilasse a vida só com palavras
breves imagens que fossem o retrato do meu pensamento.
Eu proporcionava-lhe a felicidade como um enigma
em cada palavra um sentimento formalmente virtual
depois abandonava-a com a ilusão do espaço decorativo.
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Fernando Esteves Pinto
em Área Afectada 
ed: Temas Originais, 2010
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*
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Havia sempre pedras em casa.
Ninguém tinha a possibilidade de falar sem antes erguer uma parede
palavras e pedras construíam a tortura
blocos emocionais desmoronando-se pelo tempo.
As vozes eram a grande educação
os degraus que suportavam o ensinamento.
No fundo tudo era triste, compreensível e provisório
o mundo funcionava como um tapete
no qual ensaiávamos os passos lúcidos.

O objectivo é encontrarmo-nos com as palavras dos outros
fazer dessa imagem uma porta existencial
circular pela casa e recolher o que existe de interior num abandono
respirar contra as paredes trémulas e mesmo assim violentas.
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Fernando Esteves Pinto
em Área Afectada 
ed: Temas Originais, 2010
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Chet baker consegue mostrar o pior da felicidade
Um som que se agita no fundo da alma
E faz vir à superfície as borras do prazer.
A arte não pode respeitar o erro.
Temos como refeição uma música honesta.
Leio sobre as grandes obras marítimas
As incrustações de vida nas pedras.
Eu sei que nenhuma informação ajuda
A digerir este itinerário musical.
O ensaio tem um tempero enciclopédico.
Chet baker funde todas as lâmpadas do prazer.
Resta-me obstruir a minha função visual.
.
Fernando Esteves Pinto
em Ensaio entre portas
Ed: Almargem, 1997

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*
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UM SISTEMA DE RELAÇÃO
.

Considere-se o caso em que A é igual a 1.
Obtém-se a função ípsilon igual a X à vida inteira
partindo da convicção que nenhum amor é para sempre
sendo A o mínimo absoluto do que és capaz de amar
e 1 uma falha de expressão comum ao tempo
em que sofrias fechada num quarto
a sentir uma régua de luz com origem sobre o teu rosto
a definir a região inundada do teu espaço
à medida que o tempo ocupa uma parte da cidade
e a tua situação representada numa estação de comboios
onde o esquema da vida se define por perpendiculares
aos dias cruzados na tua memória
sendo cada dia um gesto que te posiciona
em relação a todos os medos
mentiras de origem abjectas
e a proporção de ípsilon na mais estranha irracionalidade
no centro de um jardim onde se passeia geometricamente
apenas com o pensamento intimamente ligado
por símbolos de circunferência e dimensões harmoniosas
comparando o valor da vida à mais bela arquitectura
da experiência e da perda
um processo prático desenvolvido no laboratório
das horas mais simples e gráficas
ordenadas de uma forma circular
no teu caso um valor compreendido
entre duas questões humanas
por comparação do que foi destruído
pois há uma maior concentração de tristeza nos teus olhos
se designarmos por sofrimento algumas atitudes provocadas por 1
e se traçarmos duas rectas de amor paralelas à desigualdade de amar
e que passem pelos dias intuitivamente felizes
nesse quarto classificado de nuvens pesadas
onde a tua vida é agora inferior à média da felicidade
se concluirmos que o estado de ser feliz é um ponto diário
que varia de predominância e influência
nos tempos nulos condenados e negativos
na figura mínima encostada ao balcão do álcool
numa noite de cubos de gelo
e o que uma bebida especial
servida à mistura com a estratégia das palavras fez dos teus planos
calculando agora o valor referente aos lucros do amor e das promessas
introduz as marcas do teu corpo e obténs as medidas do teu prejuízo
define o tempo correspondente a cada acto de amor
seleccionando o menu da tua experiência
e tens uma lista que confirma o historial da tua personalidade
para que função o problema X tem significado
se o volume da tua casa tem todas as janelas fechadas
e o teu corpo é um fio de comprimento que mede a solidão dos dias
ou se os teus braços já não traçam uma recta de prazer abaixo da cintura
ou ainda se o teu sexo é um foco distante que se fecha em curva
e não há intersecção nem arco entre dois corpos
considerando as arestas da tua vida propriedade de defesa
uma estimativa do tempo ao fim do qual tudo se perde
e tens deste modo um amor protagonizado pelo desespero
sujeito às regras da obediência e da ilusão.
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Fernando Esteves Pinto
em Os Dias do Amor (antologia)
2009, Ministério dos Livros
.
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Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais em 1961. Colaborou no DN Jovem e no Jornal de Letras. Em 1990 recebeu o Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. É publicado em Espanha  por revistas literárias e editores independentes. Em 1998 obteve uma bolsa de criação literária  pelo Ministério da  Cultura /Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Está representado na Antologia DN Jovem, 1990, na antologia "Os Dias do Amor" (Ministério dos Livros, 2009) e na Antologia "O Prisma de Muitas Cores" (Labirinto, 2010). É editor da Revista Sulscrito e das editoras 4 Águas e Popsul, e esteve na criação da Linguagem de Cálculo, associação cultural que de dedica à promoção da arte, sobretudo do Algarve, da qual é vice-presidente.

A sua obra inclui:


Na Escrita e no Rosto (poesia) Editora Europresas;
Siete Planos Coreográficos (poesia, edição bilingue) Editora 1900, Huelva;
Ensaio Entre Portas (poesia) Editora Almargem;
Conversas Terminais (romance) Editora Campo das Letras;
Sexo Entre Mentiras (romance) Editora Leiturascom.Net.
Privado (textos, ficção) Canto Escuro
Área Afectada (poesia) Editora Temas Originais.
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Artigo de Sylvia Beirute

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