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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ANA LUÍSA AMARAL - POESIA E POEMAS

























sb: série poetas

ANA LUÍSA AMARAL

A poesia de Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956) surge estruturada de um modo conscientemente casual, com um discurso narrativo-visual sem que por esse aspecto a poesia, e a sua finalidade própria e última, sejam postas em causa. Este primeiro sinal pode passar ao lado de muitos leitores mais ou menos atentos de poesia, mas parece-me determinante, até por aquilo que a poesia, nos últimos tempos, se transformou, não raras vezes com a sua base adulterada. É que a poesia (e o seu conceito), claro está, nunca esteve no domínio do discurso; pelo contrário, sempre foi superior a ele, sempre se prestigiou na comunicação subtil de uma semificção, na fidelidade da superação. Daí este parêntesis que serve de introdução, ressalvando que a base da poesia de Ana Luísa Amaral tem essa força de transformação da vida comum em algo maior, a concepção de fundir os elementos do quotidiano em ambientes de dupla-meditação: o do sujeito poético e do espaço onde ele se insere.

Esta dupla perspectiva é um dos pontos interessantes desta poética. Atrai-me particularmente assistir à troca de lugar entre este sujeito e o ambiente que lhe é criado, ver a sobreposição de vivências ocasionais sobre esta moldura que oscila entre a mudez e dinamismo das suas linhas integrantes.

Por outro lado há aqui uma base confessional e por vezes autoconfessional, como se a partir do discurso o eu poético ainda descobrisse coisas, a partir da sua memorização, conjugado (e misturado) com aquilo que vai vendo. Veja-se este poema:


ANIVERSÁRIO

Sentei-me com um copo em restos de
champanhe a olhar o nada.
Entre crianças e adultos sérios
Tive trinta em casa.
Será comovedor os quatro anos
e a festa colorida
as velas mal sopradas entre um rissol
no chão e os parabéns:
quatro anos de vida.

Serão comovedores os sumos de
laranja concentrados (proporções
por defeito) e os gostos tão
diversos, o bolo de ananás,
os pés inchados.

Será soberbamente comovente
toda a gente cantando,
o mau comportamento dos adultos
conversas-gelatinas e os anos
só pretexto.

Mas eu gostei. E contra mim gostei
mesmo no resto:
este prazer pequeno do silêncio
um sapato apertando descalçado
guardanapo e rissol por arrumar
no chão e um copo

olhando o nada
em restos de champanhe

*

Este poema, parece-me, é um bom exemplo da forte influência de Emily Dickinson que a própria Ana Luísa Amaral descreveu assim: “A sua linguagem poética, ao mesmo tempo metafórica e elíptica, sincopada e oblíqua, sem muitas vezes concordância de formas verbais, nem respeito por plurais ou regras de gramática, deixou espaço a que dela se acentuasse o excessivo ofício com a gramática ou se falasse até de uma gramática própria. O seu uso recorrente de travessões, que fragmentam e questionam o verso, permitiu que deles se dissesse serem formas de dispersão da unidade discursiva, ou, sexualizados, uma espécie de hímen-hifen. Tudo isto me fascina em Emily Dickinson. E mais ainda: o ter falado de tudo, misturando Deus com ladrões, aranhas com vassouras, alma com vulcões, sonho com abelhas, gerânios, piscos e trevos; ou o ter examinado a morte e a vida, explorado o amor e o inferno, o êxtase, a mais pura alegria, o sofrimento, a misteriosa energia das coisas todas do universo. Ainda o tê-lo feito numa voz de mulher, aparentemente submissa, de facto poderosa”. (in Poesia & Limitada, blogue).

No poema há algum universo dickinsoniano, um requalificar do acessório, a promoção dele ao papel principal no eixo do poema. Nele há ainda uma ideia de caos, tão ao jeito de Samuel Beckett, e a procura por um desejo pretérito que chega aos dias de hoje, como que elevando a forma de cantar.

Na poesia de Amaral o sujeito filosófico dá lugar ao poético, sem que deixe de haver filosofia no estado de coisas, no puzzle enquanto objecto completo, mais do que em cada verso. Em certos poemas, vê-se claramente a personalidade actual de quem escreve como conclusão de um passado de peripécias, de diversão, desejo, transgressões e uma moral própria que é denunciada por este presente escrito e bem resolvido consigo mesmo. A este respeito o poema seguinte:


COISAS DE LUZ ANTIGAS

Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.

Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.

Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:

um namorado sem falar
de amor

(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)

*


























Alguns poemas têm a característica do retrato do vazio com o consequente preenchimento por nada mais do que o que se vê, sem metáforas, com o discurso puro que não procura a transcendência. Mas este vazio, que chega a ser chocante e visualmente antipoético, acaba por ser, no universo total da leitura, um belo poema. Porque, e uma vez mais, há que separar o discurso do objecto e fenómeno poético, porquanto aquele é somente uma parte, e não essencial, deste. O objecto pode ser encontrado de diversas formas, até com o minimalismo do verso único, e, neste caso, com um todo em que o quotidiano é uma lista de coisas do mais comum que há, uma lista que perpassa o passado e o presente e impõe uma nostalgia para o futuro.

Leia-se este delicioso Lugares Comuns do livro Coisas de Partir:


LUGARES COMUNS

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são

*

e este Músicas (do livro Minha Senhora de Quê) com um tom diferente, eivado de finas comparações com uma intersubjectividade que o coloca sempre à boca de novas revelações e compreensões. Há nestes poemas um lado propositadamente incompleto, aberto, próximo do esboço, da ideia de ir para um café, passar a tarde a escrever com uma música de fundo, reparando nas conveniências, nas pessoas que passam, tirando retratos desses rostos nas letras que mutilam a folha em branco.


MÚSICAS

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.

*

Nos últimos anos a poesia da autora mudou um pouco em termos formais, sendo que a formulação dos temas gerou um lado menos concreto (no sentido de explícito) e mais móvel, dinâmico, embora com perda do humor subtil que era característico de tempos anteriores. Vejam-se estes dois poemas do livro Se Fosse Um Intervalo (Dom Quixote, 2009)


UMA COISA SEM TÍTULO E APÓCRIFA

Um Moisés
decepado
segurando nos dentes
bordão curto demais
para nascente

Um arbusto tão curto
que o seu fumo crescesse
para logo morrer
e nunca mais

Luminosas partículas de pó,
Abraão sem sequer
a dádiva de
sonho

Espaços de projecção como em cinema,
partículas de pó iluminadas:
o invisível pó que se respira em vão
em desertos de fé,
salas vazias

E uma coisa sem título
e apócrifa
nem sequer hora sexta
mas uma
(tão prosaica)
da manhã


*

ENCENAÇÕES E QUASE VOOS

Uma luz construída
ilumina
esses santos,
cada um sem o halo,
mas pombo circundante
na cabeça

São quatro santos no cimo
da igreja,
e cada um dos pombos escolheu
a face mais marcada,
os caracóis de pedra
que fossem mais macios

Talvez não sejam santos,
mas apóstolos, tão de barroco,
e o seu gosto a vestir:
um excesso de desvio
quase pecado

Apóstolos ou santos,
os pombos circundantes na cabeça
são halos delicados
que, julgando-se em céu,
vêem quase metade da cidade,
a meio: o rio e os telhados
de casas

Fingindo-se de mão a abençoar,
são adereço de um teatro
inteiro:
caos encenado
ou um perfil egípcio

E os caracóis solenes e sombrios
convidam ao pecado
e convocam-me aqui: noite de verão,
a liquidez do olhar:

Eu não poder,
em pedra,

abrir as asas


*

Ana Luísa Amaral tem tido um percurso muito coerente na poesia portuguesa, marcando o seu espaço com mérito. Há uma unanimidade na apreciação da sua obra, o que não quer dizer que toda ela seja acessível a todos. A sua voz feminina localiza um realismo humano, estético, e com existências implícitas, umas dentro de outras, anulando-se ou adicionando-se, sempre formando um todo análogo à vida e, como pretende o leitor, sem a perder de vista.


Obra Poética inclui:

* Minha senhora de quê (1990), 2ª edição, Quetzal, Lisboa, 1999
* Coisas de partir (1993), 2ª edição, Gótica, Lisboa, 2001
* Epopeias, Fora do Texto, Coimbra, 1994
* E muitos os caminhos, Poetas de Letras, Porto, 1995
* Às vezes o paraíso, Quetzal, Lisboa, 1998
* Imagens, Campo das Letras, Porto, 2000
* Imagias, Gótica, Lisboa, 2001
* A arte de ser tigre, Gótica, Lisboa, 2003
* A génese do amor, Campo das Letras, Porto, 2005
* Entre dois rios e outras noites 2008
* Se fosse um intervalo, Lisboa 2009

Prémios

* Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas (2007)
* Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008)
* Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi


Artigo escrito por Sylvia Beirute

3 comentários:

  1. Óptima reflexão sobre a poesia de Ana Luísa Amaral, de que tanto gosto. :) Também achei muito interessante o texto sobre Beckett.

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  2. excelente Sylvia, uma análise bem complementada com poemas de que gosto muito e dos quais alguns já tive ocasião de presenciar declamados pela autora. ao relê-los não consigo dissociar a sua forma de os transmitir que os complementa e dinamiza.

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  3. Sylvia, gostei muito da sua leitura desses poemas: lúcida e sensível. parabéns

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