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terça-feira, 31 de agosto de 2010

CESARE PAVESE - POEMAS - POESIA - BIOGRAFIA



















sb: série poetas


"O ócio torna as horas lentas e os anos velozes. A actividade torna as horas rápidas e os anos lentos."
                                                                                          Cesare Pavese


Cesare Pavese, contrariamente ao poeta que anteriormente apresentei (Gunnar Björling) é um poeta que concentra todo o seu discurso poético na linguagem que o suporta. Há como que um sentido de contemplação, de testemunho objectivo, mas sem retirar do todo, e da leitura deste todo, os pressupostos subjectivos, aqueles que são unicamente válidos a uma poética de qualidade.

Há em Pavese uma compreensão da nostalgia, como se a sua transparência perpassasse o corpo, se unisse a ele, alterando-lhe a carne e o modo de se expressar. Por isso, são frequentes as referências ao corpo humano, aquele onde habita a vida e a morte e se concentram os abatimentos do tempo. Este corpo aparece como sugestionável ao carácter da paisagem, à assimilação do cenário psíquico, aos fenómenos de que carece a afirmação pessoal.

Esta poesia, de estrutura longa e escorrida, mergulha na casualidade do quotidiano, reflectindo-lhe verificações existencialistas. Essa casualidade, presente em muitos outros poetas (falei em nisso, em particular, no caso de Ana Luísa Amaral), tem uma curiosidade interessante. Ela apresenta-se como ponte para a imaginação que o poema expressa, para as reflexões que ele enceta, ou meramente para uma busca pelo eu no rosto de outrem, como se as mesmas circunstâncias pudessem reproduzir o mesmo tipo de ser humano. Neste ponto parece-me óbvio que a sua poesia não se concentra nas palavras que a carregam, e estas afirmações serão uma espécie de retórica de afirmação a fim de fazer sobressair e notar a redução de espírito que este eu poético sente.


Veja-se, ilustrando o que disse, este poema, com o nome Disciplina:


DISCIPLINA

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

Cesare Pavese, em Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca)
Tradução de Carlos Leite


No poeta há um certo culto da solidão. Em certa medida creio que ele vê a capacidade de estar só como uma evolução, como força da mente que vence o instinto. Mas por outro lado, em contraponto, também haverá uma força (ou coragem) enquanto assunção de uma fraqueza, procura de encontrar o equilíbrio no hermetismo da representação. Em todo o caso é de notar a elegância no discurso, a organização mental da inteligibilidade como esboço de uma unidade viril que é o (seu) mundo. Assim, desta solidão Pavese faz um ritual: um ritual de conhecimento, de observação dos astros, de fazer notar a quebra de luz separando o dia da noite, um ritual de interacção com as coisas, como se por momentos ganhassem forma humana ao adquirirem a capacidade da companhia.

Por outro lado, o tema da morte está muito presente, como se fosse prenúncio de iminência, como se essa morte adquirisse ela mesma uma vida e contemplasse a vida deste sujeito poético, convidando-o a assistir, desde a sua cadeira, ao movimento do corpo que todos os dias se levanta e tem o dever de contemplar (ou enfrentar), com um sorriso mínimo que seja, esse conjunto de abreviações que é o contexto que nos calha.


MANIA DA SOLIDÃO

Como um jantar frugal junto à clara janela,
Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.
Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam
ao fim de pouco tempo em pleno campo.
Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres
estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranquilo;
o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.

Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar
a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,
mas não valem estas cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sei que entre os tectos de ferrugem
brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.
Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida
das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.
Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se
no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.

Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um cicio de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.
A planura é água que escorre entre a erva,
um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra
vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias
com todas as coisas que vivem nesta planura.

A noite importa pouco. O rectângulo de céu
sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda
debate-se no vazio, longe dos alimentos,
das casas, distinta. Não se basta a si mesma
e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,
o meu corpo está tranquilo e sente-se soberano.

Cesare Pavese, em Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca)
Tradução de Carlos Leite


*


ÉS A TERRA E A MORTE

És a terra e a morte.
A tua estação é a treva
e o silêncio. Não há coisa
que viva mais do que tu
afastada da manhã

Quando pareces despertar
toda tu és dor,
está-te no olhar e no sangue
mas não a sentes. Vives
como vive uma pedra,
como a terra dura.
E há sonhos que te vestem,
movimentos, soluços
que ignoras. A dor
Como a água de um lago
estremece e envolve-te.
Há círculos à flor da água.
Deixas que se desvaneçam.
És a terra e a morte.

Cesare Pavese, em O Vício Absurdo, & etc
(Tradução de Rui Caeiro)

*

A MORTE VIRÁ E TERÁ OS TEUS OLHOS

A morte virá e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês cada manhã
quando, sob ti só, pendes
no espelho. Oh, que esperança,
nesse dia saberemos, também nós,
que és a vida e és o nada.

A morte tem um olhar para todos.
A morte virá e terá os teus olhos.
Será como deixar um vício,
como ver no espelho
ressurgir uma face morta,
como ouvir os lábios fechados.
Desceremos mudos ao abismo.


Cesare Pavese
em A Morte virá e Terá os Teus Olhos
Tradução de José Carlos Brandão


Poeta, romancista e tradutor (traduziu Daniel Defoe (Moll Flanders), Charles Dickens, Herman Melville (Moby Dick e Benito Cereno), James Joyce (Dedalus), Sinclair Lewis, John dos Passos, e Gertrude Stein), Cesare Pavese, em Agosto de 1950, deprimido e desiludido, tirou a sua própria vida, fazendo este mês (Agosto de 2010) sessenta anos desde a sua morte. 

Em 2008, graças ao mérito do esforço de Pedro Mexia, comemorou-se, de forma assinalável em Portugal, os cem anos do seu nascimento. Que este singelo texto lhe preste nova homenagem, introduzindo os meus leitores à beleza da sua poética.

Em Portugal estão editados:


*

artigo escrito por Sylvia Beirute
.

3 comentários:

  1. Maravilhosa a nota sobre Pavese. Infelizmente pouco conhecido em meu país. Quem o queria ler, não descure de sua poesia, claro, mas deve conhecer seu lindo Diário, Il Mestiere di vivere. Um longo poema em prosa!

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  2. Há mais livros de Pavese editados por cá, nos anos 60, em geral pela Portugália, A Praia, O Verão, A Lua e as Fogueiras, Antes que o Galo Cante, O Diabo sobre as Colinas, e outros. A meu ver, é na ficção que o espírito de Pavese melhor se encontra, o que sucede é que Lavorare Stanca (publicado em 1936, antes da sua novelística) foi muito mais tarde traduzido para português, bem depois do 25 de Abril, e é por isso em geral mais conhecido hoje pela poesia, a que aqui se faz justiça, de resto.

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  3. 0 Italo Calvino em "POR QUE LER OS CLÁSICOS", aponta em Cesare Pavese, um contraponto com Pasternack do " dr. JIVAGO". Pavese aparece com maestria em Prima che il gallo canti e no conto "La casa in colllina". Seria bom se pudesemos ler por aqui. Calvino aponta como perfeito o trabalho sobre consciencia moral em Pavese. berenice

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