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domingo, 4 de março de 2012

GONÇALO M. TAVARES - CANÇÕES MEXICANAS



A QUEDA

Num certo sentido, isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo, essa energia gravítica, como se os abutres fôssemos todos nós e, quando um homem caísse, rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que nós e os cães vamos comer ou beber como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; e sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair; dessa queda, sim, vem energia – mas a cidade alimenta-se acima de tudo, da queda de corpos humanos: suicídios nas pontes, por exemplo, dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse: a pressa que vemos subitamente nos rostos teve origem, pois, bem lá atrás, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida bateu na água. Queda, portanto, como a energia que substitui o petróleo e todas as outras fontes naturais: a cidade mantém-se em movimento, as casas mantêm a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar – quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada; e a queda só liberta energia quando é uma queda mortal, portanto os outros homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar a energia da gravidade de que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de u corpo já morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que se deixa cair. Tem uma passividade dupla, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage – a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso: se não lutas eu também não; o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares, liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chama sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem. E os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados por outros que recolhem as quedas. Uns recolhem os mortos e o lixo, enquanto ao lado deste grupo, outros homens recolhem a queda – e não os corpos -, como se esta fosse elementos com átomos, um elemento com substância. Mas a queda é isto mesmo: os homens recolhem uma sensação, tentam absorvê-la como um fato absorve água e a faz desaparecer e a certa altura não existe fato e água, mas apenas fato húmido; eis o que procuram os que levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velha madre que está a morrer, ou para os seus filhotes, para que cresçam grandes e fortes, e a vida é isto: um certo prazer que vem da queda dos outros. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos energia suficiente e, sim, eis como aconteceu um certo dia, as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare.

Gonçalo M. Tavares
em Canções Mexicanas
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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A DIFERENÇA ENTRE A DITADURA E A DEMOCRACIA



A diferença entre a ditadura e a democracia é que na ditadura roubam poucos, na democracia roubam muitos.

S.
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terça-feira, 11 de outubro de 2011

O POEMA ENQUANTO PARTE NÃO INTEGRAL

é como se o poema em parte não fosse meu, entendes? é como se parte dele fosse meu e a outra parte fosse dele mesmo, do poema enquanto matéria, enquanto unidade independente. é como se houvesse uma luta entre essas duas metades. e o leitor não sabe. o leitor apenas diz que os meus poemas são frios quando se quer referir a esta especial distância que aqui confesso. os poemas unificam fraquezas, lados de nós que não dominamos. e é apenas isso. nada mais.

Sylvia Beirute 
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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O MERCADO DA POESIA EM PORTUGAL




O MERCADO DA POESIA EM PORTUGAL

Muito interessante, porque dá que pensar, o mercado da poesia em Portugal, no qual me estreei com o meu livro "Uma Prática para Desconserto" (4Águas, 2011). Em geral, pelo feedback que me chega, as vendas têm sido muito aceitáveis, muito embora o destaque dado em jornais de referência tenha ajudado, naturalmente, na sua promoção. Mas sinto que ainda há uma grande fatia que, apesar de gostar do que vai lendo, ainda resiste ao acto da compra. Uma coisa peculiar é o facto de as pessoas que compram, incluindo uma boa parte de pessoas do Brasil, o fazerem directamente na editora, o que me faz acreditar que não o fazem por encontrarem o livro num espaço físico, mas sim por haver uma referência de alguém ou, simplesmente, por terem lido algo, eventualmente online, do livro. Fazer com que o número das pessoas que compram seja proporcional ao das pessoas que gostam é um desafio para os editores portugueses, estando, inclusive, em causa a sobrevivência do género. Acredito que haja ainda um campo para desbravar no que toca à rentabilização destes projectos, e que os livros de poesia não surjam apenas por carolice ou para a promoção pessoal de editores/autores.

Por outro lado, seria bom que os grandes autores de poesia em Portugal se transformassem nos grandes críticos de poesia deste país (Ana Luísa Amaral, Nuno Júdice, Amadeu Baptista, Gastão Cruz, etc). Tenho dificuldade em compreender como é que um autor de poesia falhado pode ser um crítico desse género. E, claro, esta situação não favorece em nada o estado de coisas acima descrito.
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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

ANA DE AMSTERDAM - I-PHONE

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I-PHONE

Conheço um casal feliz. Digo-o, a sério que o digo mesmo, sem ponta de sarcasmo. Nunca discutem. Vivem em perfeita harmonia, sem preocupações ou arrelias. Têm uma vivenda em caxias, profissões de sucesso, uma empregada interna, que se chama Bela e é muito competente, faz lasagna de beringela e pinhões, saladas de melancia e hortelã, têm dois filhos, um cão e dois gatos persas, a Amélia e o Zorba. Viajam todos os anos. Tratam-se um ao outro por amor. Amor, diz ela e a voz fica macia, como um novelo de lã. Amor, diz ele e vê-se que há ali um misto de doçura e lascívia, um desejo carnívoro de a tomar, corpo todo, quando a vivenda repousa. Fizeram anos há pouco tempo. Ele ofereceu-lhe um i-phone. Ela, exactamente passado um mês, na festa de aniversário que lhe preparou, também lhe ofereceu um i-phone. É tão bom quando um casal se conhece assim, do avesso.

Ana Cássia Rebelo
lido no blogue Ana de Amsterdam

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

ERNEST HEMINGWAY



Um manuscrito de Ernest Hemingway. Trata-se do conto The Battler.
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O LOBO NO REBANHO


















O LOBO NO REBANHO

A lâmina fazia-lhe um bailinho cósmico, suspirando coisas bonitas dos momentos que haveriam de vir. O desejo pressionava-lhe a parte inferior do estômago, prestes a rebentar de antecipação em uníssono com o batuque do coração. Ia parir esse desejo ainda essa noite, baptizá-lo em veludo escuro e cuidá-lo com carinho. Já tinha aprendido o abraço quente do jorrar do sangue e o clímax do poder e do momento em que observava alguém deixar de ser. Após restava a paz e a curiosidade dos olhos que pareciam estar ainda vivos num corpo - numa coisa - imóvel. Depois, a desilusão do fim; Mas antes do fim, o estrebuchar do cordeirinho dava-lhe tanto amor... e ele era sedento por amor, nunca saciava.
Deus criara-nos à sua imagem. O Deus que restava nas mulheres era criar vida. O Deus que restava nos homens - e principalmente nos homens como ele - era o de findar a vida. E ele reinava divino e fiel com um singelo Amém.

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sábado, 19 de março de 2011

SOU UM POETA EXTREMAMENTE INFLUENCIÁVEL E UM POUCO PLAGIADOR - ANTÓNIO RAMOS ROSA

SOU UM POETA EXTREMAMENTE INFLUENCIÁVEL E UM POUCO PLAGIADOR

A palavra “Poesia” não é para mim uma palavra densa, plena, isto é, uma palavra de significação inteiramente positiva. Há nela um vazio, uma névoa e uma tenuidade que se sobrepõe ao seu significado e o torna vago e quase imperceptível. Posso comparar esta impressão à sensação que sinto quando, à distância, olho os prédios altos e percepciono não a densidade dos seus moradores mas o vazio infinito que anula todo o pretensiosismo da vida humana. A palavra “poesia” parece-me afogada irremediavelmente num vazio que dilui a sua significação e a torna longínqua e apagada, quase desprovida de sentido. Mas não será essa diluição semântica, observou Mário, o que a torna extremamente poética, uma vez que, assim, é mais aberta e susceptível de nos transmitir o que há de inexprimível na poesia? Sim, talvez tenhas razão, admiti, mas essa palavra confrange-me não sei porquê. Sinto uma espécie de pudor ou vergonha, como se a poesia fosse uma matéria interdita e, de algum modo, inadmissível. Se é assim, objectou Mário, o que há de vago nessa palavra anula a pretensão ou imposição de um sentido dominante. Assim, o que há nela de impreciso vela o seu conteúdo e deixa-o indefinido. Por isso, essa palavra parece-me que não deveria suscitar nenhuma relutância pudica, porque é vaga e desprovida de um sentido positivo e determinado. Olha, Mário, esta questão parece-me destituída de sentido, como se estivéssemos a discutir o sexo dos anjos. Porque não aceitar simplesmente que o nome de poesia é um nome que nos transmite o seu conteúdo sem suscitar qualquer problema? E já agora, para contrabalançar a tendência teorizante dos nossos diálogos, proponho-te que falemos de assuntos mais circunstanciais e mais ligados à realidade imediata e particular. Estou a referir-me à minha experiência de poeta e não tanto no seu processo específico como no que respeita às suas determinações externas e a algumas circunstâncias ou episódios da minha biografia enquanto poeta. Mário disse-me então: Estou perfeitamente de acordo contigo. E, se me permites, colocar-te-ei algumas questões relativas à tua biografia de poeta. Em primeiro lugar, quero perguntar-te como se processou em ti o início da prática da escrita poética? Foi um processo fácil e espontâneo ou uma elaboração difícil e dolorosa? Respondi-lhe: Tenho uma certa dificuldade em explicar o que me levou à prática da poesia. O que sei de uma forma clara é que comecei a escrever porque amava os poetas que lia e com os quais me identificava ao ponto de os querer imitar. Este processo de identificação e de imitação determinou não só os primeiros poemas que escrevi mas também todos ou quase todos os poemas que até agora escrevi. Não tenho qualquer receio em afirmar que a originalidade dos meus poemas, sobre a qual, aliás, não tenho dúvidas, não é resultante apenas da singularidade do sujeito que sou mas também da confluência de inúmeras leituras que me estimularam e foram sempre decisivas na minha formação poética.

Naturalmente, os meus primeiros poemas não possuíam nível poético e só mais tarde, depois dos vinte e cinco anos, logrei escrever poemas de uma certa qualidade, como, por exemplo, “O Boi da Paciência”, que escrevi de um jacto, no primeiro andar do café Chave de Ouro. Esse poema nasceu, inesperadamente, com uma violência e uma espontaneidade que me surpreenderam, e foi então que o poeta que sou deu o seu primeiro passo. Esse poema, como, aliás, outros que escrevi posteriormente, não poderia surgir se eu não tivesse lido  deslumbradamente a obra de Carlos Drummond de Andrade, que fou um dos primeiros poetas a influenciar-me juntamente com Paul Éluard. Seria uma questão impertinente pretender saber o que seria especificamente meu e o que seria a contribuição do autor de “A Rosa do Povo”. Esse poema foi o resultado imediato de uma dolorosa experiência humana que veio a encontrar a sua formulação graças à influência libertadora desse grande poeta brasileiro. Supor que a influência e a originalidade constituem uma dicotomia é um erro solipsista e uma perfeita idiotice. As influências são, já por si, resultantes de uma receptividade pessoal em relação a tal ou tal obra e não indiscriminadamente a qualquer autor. Ninguém poderia escrever um poema sem ter lido outro poeta. Supor o contrário é admitir que o poeta é um ser isolado no mundo e, por conseguinte, sem o conhecimento do mundo literário ou, no caso dos poetas populares, sem a existência de uma tradição oral. Mas se é assim, perguntou-me Mário, por que é que os escritores têm tanto receio das influências e de serem acusados de as sofrerem? Penso, respondi, que esse receio se deve a uma falsa noção de originalidade que não tem em conta a sua relação com a confluência das obras que todo o escritor lê, a que não pode deixar de ser sensível e em relação às quais é sempre devedor. No que me diz respeito, esse receio não existe. Considero-me um poeta extremamente influenciável e até um pouco plagiador. Sobre alguns pequenos plágios que cometi em alguns dos meus livros, falar-te-ei daqui a pouco. Aliás, digo-te já que, sendo autor de alguns milhares de versos, me posso permitir cometer um ou outro plágio ou empregando outra palavra, talvez mais justa, uma ou outra incorporação, como o faziam os clássicos e, como por exemplo, Camões logo no primeiro verso de Os Lusíadas. Na verdade, sou extremamente receptivo em relação aos poetas que amo e admiro e os meus livros de poemas não seriam o que são, sobretudo alguns deles, se eu não tivesse lido determinados poetas que exerceram sobre mim uma atracção e um fascínio irresistíveis, tão irresistíveis como o desejo de os imitar e de integrar o que de novo eles traziam na minha escrita poética.

Verifico, porém, que esta fascinação que exercem certos poetas sobre mim e o decorrente desejo de os imitar não se traduz objectivamente numa obra destituída de originalidade e de cunho pessoal. Entre a obra que imitei ou tentei imitar e a obra que escrevi subsiste uma diferença essencial e é essa diferença que me leva a pensar que o meu livro possui a autonomia e a originalidade que considero imprescindíveis numa obra literária e que, de modo algum, foram prejudicadas pela influência que sobre ela exerceu outra obra. Pelo contrário, a influência pode ser decisiva para a descoberta da voz original do poeta que procura o seu caminho ou que, tendo-o encontrado, aspira a novos rumos para que a identidade se renove e se intensifique. Estive todo este tempo a ouvir-te sem te interromper, disse-me Mário, porque quis ouvir a tua argumentação até ao fim, tão interessado estava nela. Estou de acordo contigo, embora tenha ficado um pouco surpreendido, porque nunca pensei que a originalidade e a influência pudessem ser compatíveis. E há muita gente, tanto poetas como leitores, que não pensa assim. E até em Estocolmo, se se soubesse que tu, de vez em quando, cometes um plágio, não te atribuíam o Nobel. Sim, há muita gente que não estará de acordo comigo, porque acharia que a minha argumentação é paradoxal. Quanto ao Nobel, embora te pareça insincero, espero e desejo não vir a ganhá-lo, porque se isso acontecesse seria uma grande catástrofe para o meu sistema nervoso. O mundo da informação, e não só, cair-me-ia em cima, e lá se ia toda a minha tranquilidade, que tanto prezo. Além disso, penso que outros escritores seriam mais dignos desse prémio do que eu, como, por exemplo, Vergílio Ferreira, para só citar aquele que, além da originalidade e riqueza do seu estilo, possui uma dimensão filosófica que fez dele um grande pensador, e que nenhum outro escritor português possui. Reconheço a grandeza desse escritor e a de outros, que merecem o Prémio Nobel, mas, no que me diz respeito, embora seja suficientemente consciente do meu mérito, julgo que a grandeza não cabe a mim, sempre pensei assim, talvez por excessiva modéstia, e assim continuarei a pensar. Voltando aos teus pequenos plágios, sugeriu Mário, porque não me dás um exemplo ou dois desses plágios ou “incorporações”, como também tu lhes chamas. Sim, concordei, não receio fazê-lo. Referirei dois casos interessantíssimos e sumamente engraçados. Estava a trabalhar com um tradutor, aliás excelente, na tradução de um livro que foi editado em França. A certa altura, o nosso trabalho incidiu sobre três ou quatro versos de um poema do meu livro Volante Verde. A versão que o tradutor fizera não me pareceu satisfatória e sugeri-lhe então que traduzisse literalmente aqueles versos para francês. Objectou-me ele, peremptoriamente, que nenhum poeta francês escreveria aqueles versos assim. Retorqui-lhe então: Mas foi um poeta francês que os escreveu: Yves Bonnefoy. Efectivamente, eu incorporara esses versos desse poeta e traduzira-os literal-mente, de tal modo que a retroversão literal para francês coincidia exactamente com o original. Assim, os versos que incorporara no meu poema voltaram à origem sem perderem a sua identidade. O outro caso não é menos interessante, mas é um tanto humilhante para mim. Estava um dia a ler um texto de um poeta francês, Pierre Dhainaut, na revista Gradiva, num número de homenagem a Octavio Paz, quando deparei com uma frase que me deslumbrou, por ser extremamente poética. Imediatamente a traduzi e transformei num pequeno poema que publiquei mais tarde num livro. Curiosamente, o editor, para dar uma amostra da poesia contida nesse livro, inseriu esse poema na contracapa dessa obra. Achei graça, mas senti que essa escolha significava uma desqualificação da minha poesia. No entanto, parece-me que a meia dúzia de plágios que fiz (o maior deles foi uma tradução literal de cinco versos) se justificavam na medida em que, e desse modo, actualizam virtualidades implícitas no contexto original. Mas eu sei que há quem não aceite esta explicação…

Voltando à primeira parte da nossa conversa, atalhou Mário, parece-me que, embora de uma maneira não explícita, tu deprecias a poesia e ao mesmo tempo deprecias-te a ti próprio como poeta e parece-me que estas duas atitudes talvez se relacionem uma com a outra. Bom, retorqui, a minha noção de poesia nunca foi depreciativa. Pelo contrário… Sempre achei que a poesia permite o acesso a uma dimensão essencial do homem, que está atrofiada na sociedade actual, mas que é necessário manter viva para que o homem não seja reduzido à sua escravatura no sistema e para que possa um dia libertar-se dela e viver uma vida mais humana e mais livre. Parece-me que é a mais alta noção que se pode ter de poesia. Mas é, precisamente, por isso que a poesia não se circunscreve ao âmbito literário e aponta a uma realidade que é mais vasta e mais essencial do que ela própria. Digamos que a essência da poesia é revolucionária ou subversiva porque visa a mudança radical da vida. Il faut changer la vie, como dizia Rimbaud. No que me diz respeito, devo dizer-te que a minha auto-estima sempre foi deficiente, embora nos últimos tempos tenha subido um pouco devido a várias circunstâncias, talvez a uma certa maturidade e a uma melhor compreensão do meu próprio valor, para o que contribuiu, de algum modo, o reconhecimento de que tenho sido objecto. Mas isto é um problema pessoal que pouco ou nada interessa aqui. O essencial é a criação poética e é ela que me proporciona a mais profunda satisfação e me recompensa todas as vicissitudes e infortúnios, independentemente das homenagens e dos prémios, que têm vindo por acréscimo e, embora gratificantes, se situam na periferia e não no cerne da minha vida poética. 

António Ramos Rosa
em Prosas Seguidas de Diálogos
4 Águas
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quarta-feira, 16 de março de 2011

DEFINIÇÃO DE POESIA
























Poesia é a ciência humana que permite a captação da insustentabilidade.

Sylvia Beirute
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quinta-feira, 3 de março de 2011

RUI ZINK - TEXTO

Episódio 7 - o clímax

Estimada XXX, aqui vão as minhas respostas. Espero que sejam úteis, educativas e divertidas. Fico a aguardar que me enviem uma cópia do jornal para: XXXX 26-C, 1060-060 Lisboa. Bom 2011, RZ

1- Na sua opinião, o que é que o dinheiro não compra?
R: Sim.
2- Lembra-se do seu primeiro ordenado? Qual foi o valor? E o que fez com ele?
R: Talvez.
3- No campo da gestão do dinheiro considera-se uma pessoa poupada ou nem por isso?
R: Sim.
4- O que o faz perder a cabeça?
R: Não.
6- Se ganhasse o Euromilhões,o que faria?
R: Concordo.
7- Para si qual é o montante suficiente de dinheiro para deixar de trabalhar?
R: Sim.
8- Qual foi o melhor investimento que fez?
R: Não.
9- Em que tipo de produtos financeiros aplica as suas poupanças? É conservador ou gosta de produtos mais arriscados?
R: Talvez.
10- Como escolhe os seus investimentos: É auto-didacta? Ou recebe conselhos de familiares, amigos ou do gestor de conta?
R: Sim.
11-Qual foi o conselho mais precioso que já recebeu sobre dinheiro?
R: Eventualmente.
12- O que tem sempre na carteira?
R: Claro.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA - AMOR, PALAVRA, PAIXÃO, SACRIFÍCIO, FINITUDE

























AMOR

O amor é talvez a fronteira mais íntima de cada ser humano. É ao mesmo tempo a viagem mais longa que cada um de nós pode fazer. O amor implica uma consciência de si e a capacidade de estabelecer uma relação com o outro. Simone Weil dizia: "no princípio era a relação".


PALAVRA

A palavra, juntamente com o silêncio, é talvez o grande sintoma da nossa humanidade. As melhores palavras são aquelas que se parecem com o silêncio.


PAIXÃO

A vida sem paixão é uma vida diminuída. A paixão é o que dá o sentido da transcendência. Na paixão há emoção, entrega e sentimento de si. A paixão é a condição necessária para a experiência da plenitude e também para a experiência da solidão.


SACRIFÍCIO

O sacrifício é uma palavra inactual, é talvez a palavra que mais precisamos de descobrir, porque é uma palavra de gramática do amor, ao contrário do que se pensa. Não há amor que não inclua, no mais nuclear da sua vivência, a noção e a prática do sacrifício. O sacrifício é essa capacidade oblativa de se fazer dom e é a capacidade de amar até ao fim, até às últimas consequências. O sacrifício é muito impopular na nossa cultura, mas é algo que precisamos de voltar a pensar.


FINITUDE

A finitude é aquilo com que nos debatemos todos os dias. Todos os dias começam e acabam e isso não nos é indiferente. Por vezes é tranquilizante, mas, por outro lado, amplia a sede que temos de infinito.


José Tolentino Mendonça

José Tolentino Mendonça é poeta, padre diocesano, professor e investigador em Estudos Bíblicos na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e capelão na Capela do Rato.
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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

BERNARDO SOARES - TEMPESTADE

L. do D.

Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou. O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo. O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incómoda.

Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhámos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala de adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos eléctricos tinham também uma socialidade connosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.

Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse do guarda-vento entreaberto, «Podem sair», e disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e avançando para o Moreira, disse-lhe um «até amanhã» cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.
s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

CARLOS TEIXEIRA LUÍS - ESCREVER (AS AGONIAS DE)

















ESCREVER (AS AGONIAS DE)

Se não contas nenhuma história, de que falas? Se contas uma história, onde estão os personagens? Quem são eles? São só personagens? Não são pessoas? Então porque achas que alguém te vai ler? Se for teu amigo, vai ler-te ou não, vai felicitar-te mas não vai continuar a ler-te, vai apenas continuar a ser teu amigo, não achas? Os melhores leitores são sempre as pessoas que não nos conhecem, porque os que nos conhecem, porque haverão de nos ler, se já nos conhecem, não é verdade? Porque haveremos de vender livros aos amigos se eles não nos lêem?

Se não consegues fazer uma frase perfeita, porque não fazes duas quase perfeitas? Se escreves uma metáfora em dois segundos, porque carga de água achas que ela nunca foi escrita? Se te achas um génio da escrita, então não sabes que génio é alguém que é diferente e consegue fazer coisas que a grande maioria não consegue, e que surge só de vez em quando, assim de cem em cem anos? Se te achas um génio, não será isso, uma evidência que não o és? Vê a história, todos os Cristos que se diziam Cristos, nenhum deles era Cristo, e só houve um e nunca se identificou a si próprio mas foram os outros que o fizeram, não consegues tirar uma lição disto? Porque não vais para casa e escreves menos mas melhor? Se não sai nada de jeito porque insistes em ser poeta ou escritor se não o és, na realidade? Porque insistes? Ao menos, sê feliz.

(Jan. 11)

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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

BRASIL: UM CONTO DE NEO ONE EON

























Cada vez mais os autores aparecem com livros de qualidade à venda por essa internet fora. Dei de caras com este Absurda Mente, do autor brasileiro que assina com o curioso pseudónimo de Neo One Eon. Sobre o livro já se disse que "traz uma série de estórias que trafegam entre a realidade e o absurdo. Com toques "Kafkanianos" como em "Serviço de (in)utilidade pública", "A fuga", "Chá de sumiço" e pitadas de humor como em "O gênio de uma mulher" e "A grande novidade", Absurda Mente é um livro para se ler e reler diversas vezes. Muitos de seus contos retratam situações que vamos reconhecer em amigos, parentes, vizinhos, ou em nós mesmos, o que faz do livro um bom caminho de reflexão sobre atitudes do cotidiano e estilo de vida." Reproduzo aqui o conto A Fuga.

A FUGA

Não podia parar, tinha que continuar em frente, em curvas e becos, ruas, avenidas, calçadas, praças e outros tantos logradouros públicos. Não, não podiam alcançá-lo, seria o fim, todo esforço em vão, todas as noites mal dormidas, todas as horas de planejamento, toda a massa cinzenta desperdiçada, tudo jogado ao vento. O corpo já dava sinais de cansaço, passou por mais uma esquina, desta vez dobrando à esquerda. Que escuridão, não havia uma alma viva àquela hora da madrugada, este beco que atravessava agora era bem estreito. Não tinha tempo de bolar estratégias, tinha que seguir correndo sem olhar muito para os lados, pra trás então nem pensar! Era melhor não saber o que se passava ao redor, melhor concentrar as forças neste único objetivo, correr, correr e correr, olhando apenas os poucos metros que o seu campo de visão alcançava adiante. Braços balançando junto ao corpo no eterno movimento do pra frente e pra trás alternadamente, como se pudessem empurrar o ar com mais força e cada vez mais rápido, quando na verdade encontrava-se cada vez mais cansado e lento; era preciso manter a ilusão de que estava se saindo bem e que tudo ia acabar bem. Os cabelos compridos por vezes o atrapalhavam, caíam no rosto, tapavam sua visão. Que raio de cabeleira, porque não havia cortado ou pelo menos aparado estas pontas! A cada momento desperdiçado eles se aproximavam, porque não o deixavam em paz, porque não desapareciam de vez? Concentração, era preciso concentração, pensar poderia ser perigoso... Pensamentos não eram bem vindos agora. Logo adiante tem um banheiro público, seria prudente entrar? Será que dava pra se esconder e descansar um pouco? Não, eles o encontrariam, era arriscado demais, continuaria em frente. Estes cachorros não param de latir, será que não viam que ele estava desesperado? Será que não podiam enfiar os seus rabos entre as pernas e simplesmente dormir, porque também não o deixavam em paz? Virou à direita. Esquisito, parece que estava correndo em círculos, tinha a impressão que já havia passado por ali antes. Estes muros brancos e encardidos, algumas frases e nomes não lhe eram estranhos. Ninguém nas ruas, somente ele e seus implacáveis perseguidores! Que dor nas costas, o ar gelado adentrava pesado em seus pulmões esgotados. Já não suava mais, parecia que não havia mais água em seu corpo, precisava se hidratar. A ponte! Tinha que correr em direção à ponte, o rio poderia ser a sua salvação! Sim, a água é poluída, mas não havia outra alternativa, não dava pra parar e beber um copo d’água. Talvez eles não vissem o seu mergulho desesperado, poderia despistá-los. Ainda faltam uns 300 metros até lá, precisava apertar o passo, tinha que encarar esta ladeira logo adiante. A subida nem era tanta, mas estava no limite de suas forças, cada avançada acima era um martírio, será que ninguém estava vendo o que se passava com ele? Cadê a polícia nestas horas? Cem metros se passaram, teria que dobrar à direita, descer a pequena rampa e pegar a escadaria abaixo. Se ele não tivesse perdido o seu tempo imaginando coisas talvez não estivesse nesta emboscada. Porque não fora um cidadão comum, como todo mundo? Porque tantas experiências, porque tantos livros, porque tantas idéias? Porque o mundo não lhe bastava a ponto de... Não, malditos pensamentos, estavam atrasando seus passos! A escadaria enfim, degraus abaixo e avante! Porque descer era sempre mais complicado que subir, ao contrário do que a maioria pensa? O joelho doía a cada impacto, as coxas fervilhavam, a batata da perna começava a dar sinais de câimbra. Porém, ele não podia parar, de jeito nenhum seria apanhado, preferia a morte a isto! Mas também não queria morrer agora, por isto continuava a fugir. A ponte, já avistava a ponte ao longe. Só mais um pouco, só mais alguns metros. Esbarrou num latão de lixo, foi sujeira pra todo lado. Sua visão estava ficando embaçada, o cansaço era avassalador, as pernas começavam a bambear. Em frente, enfrente, só mais um pouco, só mais um pouco, lutava contra si mesmo. Deu uma boa arrancada, tirando forças sabe-se lá de onde, e pulou. Splash! Aquela água turva e gelada o rodeava agora, aproveitou para beber uma boa quantidade dela. Era repugnante, porém estritamente necessário. Nadou para o fundo, mal enxergava um palmo a sua frente. Será que os havia despistado? Mal lhe ocorrera tal pensamento e logo percebeu a presença deles nadando em sua direção. Mas será possível, que inferno! Continuou nadando, mas o ar começava a faltar em seus pulmões, era preciso retornar à superfície. Sobe, sobe, sobe... Sobe! Finalmente conseguiu sair da água, voltando a correr. Agora estava menos cansado, a estratégia do rio tinha dado certo. Subitamente lhe veio uma idéia, como se fosse um sinal dos deuses: a igreja. Precisava correr para a igreja local, poderia ser a sua salvação! No meio do caminho lembrou-se de algo curioso, que no rio não estavam todos os seus perseguidores, um não havia mergulhado e estranhamente parece que também não o estava seguindo agora. Mas um a menos não fazia tanta diferença assim, e além do mais não podia perder tempo filosofando sobre isto. A igreja, tenho que entrar naquela pequena igreja, pensava. Estava encharcado, teve que tirar os sapatos e agora corria com os pés descalços, deixando um rastro de sangue pelo caminho. Aquilo tinha que ter um fim, esta cruel perseguição havia de acabar em breve. Mas porque tudo isto, porque não sumiam de uma vez por todas? Porque de tempos pra cá estas situações se tornaram uma constante em sua vida? O que ele tinha feito, porque o perseguiam tão implacavelmente? E porque diabos fugia, porque simplesmente não parava e perguntava o motivo daquilo tudo? Não, poderia ser muito arriscado, não ia correr este risco; correr, só se fosse pra frente! A igreja, já conseguia ver a igreja. Quanto mais se aproximava, mais percebia como era pequena aquela construção. Seus perseguidores também se aproximavam, ouvia seus passos mais perto e mais altos. Acelerou, tinha que dar um jeito de escapar! Como é tudo tão parecido neste lugar, observava enquanto corria. Precisava despistá-los mais uma vez, mas já não sabia como. De repente começou a ziguezaguear, desviando do caminho da igreja. Opa, parece que deu certo, não estava mais ouvindo aqueles passos abomináveis, será que conseguira realmente enganá-los? Deu a volta na igrejinha e entrou pela porta da frente, a única que ele tinha visto naquela escuridão toda. Sentiu uma paz confortadora, nunca havia entrado ali antes, apesar de ter passado por ela inúmeras vezes. Como era linda, como era minúscula! Aproximou-se do pequeno altar e ajoelhou-se diante da cruz, que estava pendurada na parede e que também tinha a imagem de Jesus Cristo pendurada nela. Começou a rezar. Porém, seu momento de paz durou pouco, ouviu o barulho da porta rangendo. Eram eles, seus infelizes perseguidores! Agora não havia pra onde correr, tinha que encarar o problema de frente. Mas ao invés de perguntar o que estava acontecendo e a razão daquilo tudo, ele arrancou a cruz da parede e começou a golpear seus oponentes. Eram golpes raivosos, com bastante cólera, de um ódio incontrolável. E estava tendo sucesso, os malditos estavam todos caindo, uma a um! Mas estranhamente sentiu o gosto amargo do sangue em sua boca e quando deu por si estava no chão, juntamente com seus inimigos.

No dia seguinte seu corpo foi encontrado no chão da capela do sanatório municipal, todo ensangüentado. Ele sofria de esquizofrenia."

Neo One Eon
em Absurda Mente
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sábado, 18 de dezembro de 2010

GASTÃO CRUZ: TRANSPARÊNCIA E SOMBRA EM EUGÉNIO DE ANDRADE

















O que tem sido dito e escrito sobre Eugénio de Andrade tende, muitas vezes, para a apresentação da sua poesia com uma tonalidade, se não única, largamente dominante: diurna, transparente, de uma harmonia sem dissonâncias. Ele próprio se definia como "um poeta solar".

Lembro-me de o ouvir dizer, não há muitos anos, que o seu desejo de escrever diminuíra, já que começava a impor-se-lhe uma visão mais amarga da vida, determinada pelo envelhecimento, e não queria ceder à adopção de uma atitude que contrariava a verdadeira natureza da sua poesia. Apesar disso, ela irrompe, com terrível veemência, em alguns poemas escritos "às portas da velhice" - expressão usada no livro "O Sal da Língua". Entre os poemas finais de "Rente ao Dizer", por exemplo, uns quantos há que fazem parte dos mais sombrios que Eugénio alguma vez escreveu: "Fim de tarde em S. Lázaro", "Versos de inverno", "À boca do poço", "Último poema"; ou "Cerco", em que o corpo, "que foi afável/e crédulo e solar", surge agora "distante e tão cercado/de apagadas águas".
Não creio, todavia, que este modo menos diurno e solar de encarar o mundo, a vida e, acima de tudo, o corpo, seja exclusivo da última fase de Eugénio de Andrade. Já em escritos anteriores procurei mostrar como, desde sempre, na sua poesia existiram fortes contrastes, que encontram formulação particularmente expressiva num poema como "Litania": "as mãos, de certo modo, irresponsáveis,/e contudo sombrias, e contudo transparentes"; "as palavras mordendo a solidão,/atravessadas de alegria e de terror".
O valor atribuído ao corpo, ao desejo do corpo ("como se o teu corpo/fora a vida toda//o desejo hesita/em ser espada ou flor"), faz temer a sua perda, ou, mais exactamente, a perda do seu esplendor. Em "Mar de Setembro", que o poeta publica em 1961, aos trinta e oito anos, já ele fala da juventude como coisa passada: "Diremos prado bosque/primavera,/e tudo o que dissermos/é só para dizermos/que fomos jovens."
Não se tem, talvez, também reparado muito como, naquele que continua a ser, porventura, o seu livro mais emblemático, "As Mãos e os Frutos", o grande livro de exaltação do corpo amoroso e do desejo ("Foi para ti que deitei no chão/um corpo aberto como os animais."), a noite ("Só sei que passo aqui a tarde inteira/tecendo estes versos e a noite/que te há-de trazer e nos há-de deixar sós."), a solidão ("Hoje deitei-me ao lado da minha solidão."), a sombra ("A tua vida é uma história triste./ A minha é igual à tua./Presas as mãos e preso o coração,/enchemos de sombra a mesma rua."), a própria morte ("Em cada fruto a morte amadurece"), têm uma presença decisiva, que acentua a melancolia do poema (na verdade, de um só poema se trata) e o matiza com tonalidades elegíacas, como bem compreendeu Fernando Lopes Graça, no belíssimo ciclo de melodias que, a partir dele, compôs (para quando a regravação, ou, pelo menos, a reedição da gravação existente?).
Eugénio esteve sempre bem consciente de que há duas faces na vida, uma diurna e outra nocturna. Quis vencer o "obscuro domínio", "penetrar (...) na luz queimada", rasgar a sombra, perder-se na face transbordante da vida: "Canção, vai para além de quanto escrevo/e rasga esta sombra que me cerca./Há outra face na vida transbordante:/que seja nessa face que me perca." ("As Mãos e os Frutos")
Mesmo nos últimos livros, por entre momentos de quase desespero, ressurge a vontade de salvar o corpo da dor da velhice, que é "doença da alma". E este momentâneo regresso à crença no corpo como "exaltação", ainda que passada, como "cristal" que importa preservar, proporciona-lhe poemas admiráveis; é o caso de "De ramo em ramo", de "Ofício de Paciência" (1994): "Não queiras transformar/em nostalgia/o que foi exaltação,/em lixo o que foi cristal./A velhice,/o primeiro sinal/de doença da alma,/às vezes contamina o corpo./Nenhum pássaro/permite à morte dominar/o azul do seu canto./Faz como eles: dança de ramo/em ramo." Ou, no mesmo livro, "O lugar mais perto": "O corpo nunca é triste;/o corpo é o lugar/mais perto onde o lume canta./É na alma que a morte faz a casa."
Fiel, até o fim, ao seu destino de poeta solar, Eugénio jamais ignorou que a amizade íntima com o sol, de que falou Luís Miguel Nava, estava permanentemente ameaçada, sendo preciso lutar por ela. Porque esse "sol" não era, afinal, senão o próprio corpo, astro vulnerável ao tempo e à sua passagem.

Gastão Cruz
publicado no Público
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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

EDUARDO PITTA - O MESTRE DA ELIPSE


























O MESTRE DA ELIPSE

Nos jornais da província, é ou era frequente vir notícia do aniversário do juiz da terra, o trânsito de um notável, ou o matrimónio da filha do senhor presidente da Câmara. Não tem mal esse paroquialismo. É uma forma de "nobilitação" como qualquer outra.


Atingido o patamar nacional, a dimensão passa a ser outra. Por isso me causa estranheza o lastro provinciano de algumas manifestações associadas à morte de Eugénio de Andrade. Ouvir lamentar a fraca afluência de políticos "de Lisboa", ou, pior ainda, ver no cemitério do Prado do Repouso um dirigente partidário a perorar como se estivesse num comício, lembra fatalmente as ominosas práticas de certos regimes. Eugénio tem direito a ser tratado com respeito, significando isso que dispensa a lógica "apparatchik". Uma coisa é a comoção dos amigos próximos, merecedora de reserva, outra bem diferente a falta de pudor de quem não se coíbe de recordar quanto Eugénio lhe ficou a dever o "conforto" dos últimos anos. As Fundações existem para preservar a memória ou potenciar o estudo da obra dos patronos, sendo irrelevante a eventual (e muito rara) vertente doméstica.
Um poeta, e por maioria de razão um poeta com o perfil de Eugénio, sobrevive na obra que deixa. Ler os seus livros é a homenagem que lhe devemos. Lê-lo e manter o que dissemos enquanto vivia. Os poemas, os textos em prosa, tão esquecidos, tão pouco citados - quem se lembra da colectânea de 1968 onde nos fala de Pascoaes, Lorca, Pavia, Rosalía, Resende, Nobre, e outros, "Os Afluentes do Silêncio", precisamente -, as entrevistas que deu, e foram tantas que algumas passaram despercebidas, mas numa delas, livre de entrelinhas, idiossincrática entre todas, Eugénio não teve pejo em listar aquilo que detestava, o verbo é seu: fado, sebastianismo, filosofia portuguesa, o Papa, os militares, a obra de Camilo, Wagner, Elizabeth Taylor, os sonetos de Florbela Espanca, as praias do Algarve, o bispo de Braga, migas de bacalhau, o Ulisses de Joyce, a senhora Thatcher, Almada Negreiros, folclore, travestis, pupilos do exército, exibicionismo, sentimentalismo, surrealismo, poesia barroca, a arquitectura de Taveira, Almodóvar, os pastorinhos de Fátima, a poesia de Ginsberg, o carnaval brasileiro, a pintura de Rubens, os acrósticos, Andy Warhol, "O Retrato de Dorian Gray", louça das Caldas, Madonna, castelos da Baviera, pilhérias, comer com mais de uma pessoa, etc. Por contraponto, também dizia, na mesma entrevista, do que gostava: entre outras coisas, dos esquilos de Central Park, de Virginia Woolf, de Mozart, de Oxford, dos madrigais de Monteverdi, de Moby Dick, de espirituais negros, das dunas de Long Island no Inverno, das Goldberg Variations, de framboesas, de Walt Whitman, de coros alentejanos, da mãe, e de um verso de Cesariny: "Conto os meus dias, tangerinas brancas". As coisas amadas correspondem à imagem que lhe ficou colada. Mas qualquer coisa me diz que o Eugénio mais autêntico passa pelo inventário do abominado. Aos poetas não se exige que sejam "correctos", apenas se lhes pede genuinidade. Como disse Joaquim Manuel Magalhães, "transformá-lo no poeta oficial daqueles que não reconhecem os poetas maioritários [...] coloca-o na linha inquietante dos homenageáveis que se deixam homenagear." (cf. "Os Dois Crepúsculos", 1981, p. 93) Insistir na "veneração" acrítica é um disparate e um erro.
Um dos sintomas desse culto passa pelo branqueamento da homossexualidade de Eugénio. Lembro-o sem intuito de estabelecer qualquer tipo de "homonormatividade". Longe disso. Acontece que há uma coisa chamada identidade sexual, a qual, no caso de Eugénio, sofreu entorse sistemática. Se é verdade que tudo assenta numa "elemental" ambiguidade, falando e não falando "do que tanto se calava / ou só obliquamente referia", não podemos ignorar a obsidiante presença do corpo masculino: "As Janelas / abrem [...] para a extrema embriaguez / de um corpo nu nas areias. / / As janelas abrem para a loucura / da sombra de um lírio entre as pernas. / / Abrem para a luz extenuada / e masculina das colinas, / / para as águas tresmalhadas, / para a língua em chama nas virilhas [...]". A repressão teve a sua quota: nas edições anteriores a 1966, o último verso do poema VIII de "As Mãos e os Frutos" era "uma mulher pura como os animais". A partir desse ano passou a ser "um corpo aberto como os animais". É o triunfo do referente sem género. Mestre da elipse, Eugénio não mais parou de ser incensado.
Mas, onde quer que esteja, estou em crer que está a fazer figas pela "desforra". Eugénio soube sempre que o beija-mão nada tinha de inocente. Ter-se posto a jeito foi o ónus que sofreu pela tença.

Eduardo Pitta
publicado no Público
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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

LUIS CERNUDA - CARTA A EUGÉNIO DE ANDRADE

























CARTA A EUGÉNIO DE ANDRADE

Tres Cruces,11
Coyacán
México, D. F.
México
Março 3, 1959

Desde há dias que queria escrever-lhe e agradecer-lhe o seu livro "Coração do Dia"; mas não tinha nem tenho a certeza que a sua direcção mudou, pois no envelope onde vinha o seu livro aparece como Rua Coelho Neto, nº 40 B, 1º. Seja como for, vou enviar esta carta para essa direcção.


Essa demora deu-me tempo para ler e reler os seus versos, cheios de uma magia tão penetrante, de uma formosura irresistível.
Como eu já observava nos livros "As Mãos e os Frutos" e "Até Amanhã", e porventura ainda mais evidente neste "Coração do Dia", V. tem o dom raro de fazer que visão e expressão coincidam até ao ponto de que a segunda pareça o prolongamento, a demora saborosa da primeira. Por isto, as suas palavras não pesam, de modo diferente do que acontece com as castelhanas, tão pesadas às vezes que são, ou parecem, rudes. O olhar e o som tornam-se aí carícia suavíssima, como de um pluma, uma asa.
Que achado é o breve poema final do livro, "Despertar". E não só num poema tão curto, mas noutro dos que mais gosto (na verdade, quase não posso ter preferência entre eles, tanto me atraem todos), a "Pequena Elegia de Setembro", no qual me comove um idêntico dom de espiritualizar, graças à visão e expressão angélica, o nosso mundo, as nossas emoções, as nossas criaturas.
Por vezes (perdoe a minha conjectura, ao falar de coisas que sei insuficientemente) parece-me achar nos seus versos um eco das cantigas de amigo, a que V. se referia numa das suas cartas; a mesma ternura melancólica, a mesma música de som e de ritmo.
Vejo que nada lhe disse sobre o poema "Entre Março e Abril", que me dedica, e que eu já conhecia do ano passado. Quanto lho agradeço, caro amigo.
Um abraço do seu admirador,

Luis Cernuda
Tradução de José Bento
Em "Cartas a Eugénio de Andrade"
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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

MARIA QUINTANS - CHAMA-ME CONSTANÇA













Chegava a manhã e tu mantinhas a porta em segredo de fechadura completamente escancarada à espera dos pássaros. Eu nunca dizia nada. Era menos seguro aprender a lição dos poetas que vagueavam lá por casa à espera de uma sopa quente e de cobertores para aquecer as amarguras. Nunca dizia nada. Nada mesmo. Trazia os cobertores e tapava os poetas. Aquecia-lhes a sopa que tinhas preparado com nabos e cenouras compradas na mercearia do outro, aquele que tinha nas barbas uma mão-cheia de palavras. Eu alimentava os poetas e desenhava-lhes a colher no guardanapo enquanto o desespero me contornava a nuca. Eles comiam e ficavam quietos. Tu ficavas com a satisfação dos grandes a desbravar sons nas cordas dos violinos. Eu acabava de acender o canto do cão e ele enroscava-se nas pernas. Os poetas adormeciam e eu acendia o candeeiro ao pé da tua mão e lia-te um pedaço de papel escrito por eles. Dizias que era bonito e o cão ressonava. Levantava-me e escorria sangue pela parede do quarto. 

Maria Quintans
em Chama-me Constança
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GONÇALO M. TAVARES - A ÚLTIMA FISCALIZAÇÃO
























A ÚLTIMA FISCALIZAÇÃO

O senhor Cortázar cruzou-se com um inspector fiscal.
Estranhamente, a primeira pergunta deste não visou questões de impostos. A primeira pergunta do inspector fiscal, com um sorriso, foi, simplesmente:
– Tem horas, senhor?
O senhor Cortázar não se iludiu com a simpatia aparente e com a pergunta pacífica.
Afastara um pouco para trás o punho da camisa e preparava-se para dizer as horas quando foi interrompido por um seco, mas não antipático:
– Passe o relógio para cá.
O senhor Cortázar, sem resistir, abriu a fivela do relógio e entregou-lhe, como pensava naquele momento, as horas todas. Que fique com elas para sempre, o maldito, pensou, então, o senhor Cortázar.
O inspector fiscal sorria ao de leve enquanto guardava o relógio no bolso.
Depois, perguntou de novo, com um tom suave demais:
– Tem pressa?
O senhor Cortázar respondeu que sim, alguma.
– Dê-me os seus sapatos - murmurou o inspector fiscal.
O senhor Cortázar dobrou-se um pouco, descalçou os sapatos e entregou-os. E o inspector, sem uma palavra, guardou a nova oferta.
– Tem frio?
O senhor Cortázar pensou que o fiscal se referia aos seus pés, agora encostados directamente ao belíssimo chão do país. Mas antes de o senhor Cortázar responder, o inspector fiscal murmurou:
– O seu casaco...
Já não eram necessários verbos, tudo estava claro entre os dois. O senhor Cortázar entregou o casaco que o fiscal de novo guardou na sua mala.
O mesmo se passou com as calças, a camisa, a carteira; enfim, tudo.
Cortázar estava agora nu, sob os olhares críticos e trocistas de quem passava. Aquela era uma vergonha de que jamais se esqueceria.
– Tem arma em casa? - perguntou o inspector fiscal, subitamente.
O senhor Cortázar respondeu que não.
– Sabe manejar uma arma?
O senhor Cortázar não era capaz de mentir:
– Sim - respondeu.
– Pois então... - disse o inspector fiscal, revelando, naquele momento, pela primeira vez, uma voz profunda, melancólica, a voz mais triste que alguma vez fora dada a ouvir ao senhor Cortázar (desde que este era vivo e capaz de ouvir).
- ...Pois então - dissera o triste inspector fiscal ao obediente senhor Cortázar, enquanto lhe passava um objecto reluzente - tome esta arma carregada, senhor Cortázar, e, por favor, com um único tiro, sem falhar, vingue-se.

Gonçalo M. Tavares
em Revista Pessoa
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