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sábado, 18 de dezembro de 2010

GASTÃO CRUZ: TRANSPARÊNCIA E SOMBRA EM EUGÉNIO DE ANDRADE

















O que tem sido dito e escrito sobre Eugénio de Andrade tende, muitas vezes, para a apresentação da sua poesia com uma tonalidade, se não única, largamente dominante: diurna, transparente, de uma harmonia sem dissonâncias. Ele próprio se definia como "um poeta solar".

Lembro-me de o ouvir dizer, não há muitos anos, que o seu desejo de escrever diminuíra, já que começava a impor-se-lhe uma visão mais amarga da vida, determinada pelo envelhecimento, e não queria ceder à adopção de uma atitude que contrariava a verdadeira natureza da sua poesia. Apesar disso, ela irrompe, com terrível veemência, em alguns poemas escritos "às portas da velhice" - expressão usada no livro "O Sal da Língua". Entre os poemas finais de "Rente ao Dizer", por exemplo, uns quantos há que fazem parte dos mais sombrios que Eugénio alguma vez escreveu: "Fim de tarde em S. Lázaro", "Versos de inverno", "À boca do poço", "Último poema"; ou "Cerco", em que o corpo, "que foi afável/e crédulo e solar", surge agora "distante e tão cercado/de apagadas águas".
Não creio, todavia, que este modo menos diurno e solar de encarar o mundo, a vida e, acima de tudo, o corpo, seja exclusivo da última fase de Eugénio de Andrade. Já em escritos anteriores procurei mostrar como, desde sempre, na sua poesia existiram fortes contrastes, que encontram formulação particularmente expressiva num poema como "Litania": "as mãos, de certo modo, irresponsáveis,/e contudo sombrias, e contudo transparentes"; "as palavras mordendo a solidão,/atravessadas de alegria e de terror".
O valor atribuído ao corpo, ao desejo do corpo ("como se o teu corpo/fora a vida toda//o desejo hesita/em ser espada ou flor"), faz temer a sua perda, ou, mais exactamente, a perda do seu esplendor. Em "Mar de Setembro", que o poeta publica em 1961, aos trinta e oito anos, já ele fala da juventude como coisa passada: "Diremos prado bosque/primavera,/e tudo o que dissermos/é só para dizermos/que fomos jovens."
Não se tem, talvez, também reparado muito como, naquele que continua a ser, porventura, o seu livro mais emblemático, "As Mãos e os Frutos", o grande livro de exaltação do corpo amoroso e do desejo ("Foi para ti que deitei no chão/um corpo aberto como os animais."), a noite ("Só sei que passo aqui a tarde inteira/tecendo estes versos e a noite/que te há-de trazer e nos há-de deixar sós."), a solidão ("Hoje deitei-me ao lado da minha solidão."), a sombra ("A tua vida é uma história triste./ A minha é igual à tua./Presas as mãos e preso o coração,/enchemos de sombra a mesma rua."), a própria morte ("Em cada fruto a morte amadurece"), têm uma presença decisiva, que acentua a melancolia do poema (na verdade, de um só poema se trata) e o matiza com tonalidades elegíacas, como bem compreendeu Fernando Lopes Graça, no belíssimo ciclo de melodias que, a partir dele, compôs (para quando a regravação, ou, pelo menos, a reedição da gravação existente?).
Eugénio esteve sempre bem consciente de que há duas faces na vida, uma diurna e outra nocturna. Quis vencer o "obscuro domínio", "penetrar (...) na luz queimada", rasgar a sombra, perder-se na face transbordante da vida: "Canção, vai para além de quanto escrevo/e rasga esta sombra que me cerca./Há outra face na vida transbordante:/que seja nessa face que me perca." ("As Mãos e os Frutos")
Mesmo nos últimos livros, por entre momentos de quase desespero, ressurge a vontade de salvar o corpo da dor da velhice, que é "doença da alma". E este momentâneo regresso à crença no corpo como "exaltação", ainda que passada, como "cristal" que importa preservar, proporciona-lhe poemas admiráveis; é o caso de "De ramo em ramo", de "Ofício de Paciência" (1994): "Não queiras transformar/em nostalgia/o que foi exaltação,/em lixo o que foi cristal./A velhice,/o primeiro sinal/de doença da alma,/às vezes contamina o corpo./Nenhum pássaro/permite à morte dominar/o azul do seu canto./Faz como eles: dança de ramo/em ramo." Ou, no mesmo livro, "O lugar mais perto": "O corpo nunca é triste;/o corpo é o lugar/mais perto onde o lume canta./É na alma que a morte faz a casa."
Fiel, até o fim, ao seu destino de poeta solar, Eugénio jamais ignorou que a amizade íntima com o sol, de que falou Luís Miguel Nava, estava permanentemente ameaçada, sendo preciso lutar por ela. Porque esse "sol" não era, afinal, senão o próprio corpo, astro vulnerável ao tempo e à sua passagem.

Gastão Cruz
publicado no Público
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