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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

JOSÉ EMÍLIO-NELSON: POEMAS, POESIA, ANÁLISE CRÍTICA, OBRA E BIOGRAFIA



















sb: série poetas


JOSÉ EMÍLIO-NELSON 

......................................................A minha vida endurece/a paixão persiste
.........................................................................................................José Emílio-Nelson

A poesia de José Emílio-Nelson (Espinho, 1948) surge como um reforço de memória para a matéria intrínseca que o poeta pretende alcançar, uma matéria que toma forma gradual, variante à medida que as verdades que a realidade oferece se dissolvem para dar lugar à unidade e a uma coerência que se entrega de pleno a cada palavra. A vida adquire uma outra independência, partindo de um lado conceptual, de uma mão invisível, ou de uma insuficiência. Este último ponto - o da insuficiência - parece-me crucial para se compreender estes poemas. Porque se traduz na poesia que secunda a vida, que lhe cobre os ombros despidos, a enche de edifícios que tocam o céu de todos os gestos. Não raras vezes a poética emílio-nelsiana faz um forte apelo à natureza e à vida rural, tornando-se estas um pano de fundo que se vai aproximando do desenrolar das cenas, integrando-lhes os veios, homogeneizando-se o ritmo compassado, o tempo no centro do coração. Creio que se trata de uma busca pela simplicidade universal, pelos poderes misteriosos da génese que se vão reflectindo entre si. Mas esta simplicidade é, noutros poemas, meramente aparente. Porque é uma espécie de força progressiva, uma ponte para a individualidade máxima, tendo do seu outro lado a crise do sujeito e do seu interlocutor, magicamente transpostos para o ambiente mais citadino e agitado, com pessoas de "rosto maquilhado" e "lágrimas de metal". Em 1988, no Jornal de Notícias, Isabel de Sá escrevia sobre o autor e sobre os seus livros Polifemo e Outros Poemas, Extrema Paixão, e Nu inclinado. Nesse interessante artigo dizia que "o poeta procura o mundo dentro de si buscando-lhe a verdade". É na realidade o último reduto desta poesia: a criação do seu mundo, de uma consciência crítica a partir da repercussão emocional dos olhos, de uma fundamentação existencialista no cruzamento entre sensação e linguagem, leituras e  ressonâncias, o nu mais puro e verdadeiro e suas opacidades.


Poemas seleccionados:

MINA SAN JOSÉ

Rezo pelos mineiros chilenos.
As almas soltando labaredas de El Greco.
Ciclopes à espera de subirem ao céu azul
Pelo tubo dum órgão de luzes
Que os ressuscita no sepulcro.

Estes mineiros extraem Deus.

José Emílio-Nelson
inédito, lido no Poesia Distribuída na Rua
.
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SOBRE O SÁTIRO

Desprende de si os chifres da cabra
Com que cobre a cabeça que uiva.
A carne descarnada
Fez-se músculo. E fez-se brilho.
Reconhece nas águas lúgubres o calcanhar
Que pisa o «falso engano».
Suporta o balanço do esperma como se fosse incenso.
E enfia um olho no fundo das nádegas, outro na testa.
A cegueira não o ajuda a ser
Animal para uma fêmea tremulante.
Raspa, alisa sem descanso, arredonda o que se faz odre.
E no vaso da ostentação enfia o farto couro da cabra.
Cresce-lhe o «grito feminino» entre as pernas marcadas de dureza.
(Não haverá velório para o corpo amputado do seu pénis, seta de cetim.)
Espera em Sodoma que o venham recolher.

***

ROXO

Resplandecente, e resplandece.
É esplendente o «lírio roxo»,
O tom escuro raiado de carne crua, a cor apodrecida,
Roxa carne vomitada em cima da carne roxa nos seus novelos.
Aí não há quem não a inale.
Vem com cuidado «à menor parte» do corpo, e alegre.
Cega olhar a jóia roxa, a alegria.

***

QUAL TULIPA?

Vês a tulipa rude
Quando outra boca a abandona.
À sua pele aveludada, cintura fina,
Quase a mordes.
A essa tulipa crua, ao esmagá-la,
Não lhe escondes o odor. (Jorra, esguicha.)
Abre-se por dentro, lançada fora.
A desatenção solta-se, lágrima sã de odorosa.
Da embriaguez, não é outra coisa, rude, crua.

***

SOBRE O ANDRÓGINO

Aquele a quem confio o coração e o trafica
Aparece com o rosto maquilhado
Da cor que não se distingue dos ossos
Com que me castiga o dorso.
E como um sopro que toca a luz
Deita-se de joelhos na nuca,
Serve a carne num banquete.
(Tem tanto de si em mim perdido — velha crença —
Que esqueço o que sou.)

José Emílio-Nelson
em Ameaçado Vivendo - Obra Poética II (2005-2009) 
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CANÇÃO PUNITIVA

Atarda-me o olhar naquela escarpa
(Distância intranquila de sombra
Ou penas de pássaros acamadas?)
Pena de mim mesmo enquanto lembro
No pálido ar, homem obscuro,
A sua imagem, inacessível.
Desconheço o azul de mulher tão lívida.
O coração é uma pequenina pedra rosa.
As minhas lágrimas são de metal.

José Emílio-Nelson
em Polifemo e Outros Poemas
.
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NO ÚLTIMO RESTAURO

No azulejo vasto há um monge
de perfil pétreo, desdenho eu,
que relê obstinado o enigma
audacioso de um Santo do século sexto.
Decifra na miniatura ali desenhada
e que suspensa numa nuvem nos parece.
O monge casto contempla a virtude e
o abismo que se descreve numa súmula
de copista puro.
No último restauro a limpidez
foi ofuscada por empastados
e cresceu a plumagem da pena
até então adelgaçada e mais fendida.
A sua mão está quebrada pela argamassa
que a divide em quadrados de azul.
O monge que decifra nas trevas
o seu refúgio, redige no século sexto.
Descubro, espiando, que há um monge, satânico,
que redige as trevas.

José Emílio-Nelson
em Polifemo e Outros Poemas
.
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DESASTRES DA GUERRA

Quem não ouve a pequena sílaba
O rasgo minúsculo da raiz
A seiva da árvore do tempo?
Interrompe a morte.
Aquieta o olhar no braço decepado
Abrindo um charco a primeira fonte
De morte sem fim
Agarrando ao tronco uns olhos despegados
Empastado gesso de sangue na erva.

José Emílio-Nelson
em Extrema Paixão
.
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PAISAGEM BUCÓLICA QUE SE PERDE

A paisagem que se perde numa parede húmida
Estala o tronco a cal e a pintura vaga
Reduz a branco a magnólia.
O bode deforma-se
Roe urze cego
Alonga as patas
Difusas varas de chuva
Atenuando a paisagem fulgurante.
A postura do camponês retratado
Na lide dura
Rompe o empastado.

José Emílio-Nelson
em Polifemo e Outros Poemas
.
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ALMANAQUE

Ao ler o almanaque
rasgou a capa e nas páginas interiores
uma mulher
limpa-metais.
E com a lâmina ou lâmpada ou
a página
feriu os olhos
que o fixaram
entre a volúpia e a compaixão.
Por isso naftalina no almanaque de 48.
A traça no meu rosto.

José Emílio-Nelson
em Vida Quotidiana e Arte Menor
.
.
A VIDA QUOTIDIANA

Trazem-me os cavalos
a casa
pela televisão.
Ainda mais lustrosos.
Mas perde-se do galope
o eco
que como girândola se repete.
– Fechem essa merda, meu filhos,
enquanto eu não esquecer
que eu os vi.

José Emílio-Nelson
em Vida Quotidiana e Arte Menor
.
.
NO HORTO

Não há morte que não dedilhe
nesta pedra
de seco arbusto
de nós.
Lassidão, temor, rosas pregadas.
(E eu disse entretanto:)
Rosas esmaecidas
diante das lágrimas do Filho e
desde sempre a sofrer.

José Emílio-Nelson
em Mosaico
.
.
CARAVAGGIO

Cálida a luz do anjo
é dádiva.
Em Caravaggio o nu dá a Deus
um molde canhestro e
de amargor.
Brutal o rosto do homem, hirto,
a ofender
(remexeu-se esplêndido,
enfaixado na amarelenta luz
que o cinge).

José Emílio-Nelson
em Mosaico
.
.
AUTOBIOGRAFIA

Algumas poucas tabernas, velho armário,
cão de folhas,
árvores do escuro ladram,
eu corro pelas páginas no focinho do cão.
A garrafa. O gin gira
e fere-me lábios e aviva o vinho velho.
Velho vidro. Espalha o espelho (as palavras
no charco do álcool).
Nunca o coração bebe,
a árvore ondulante bebe,
o coração obscuro vive a violência
do meu ponto de vista,
mas habita-me
na confissão
se os cães da retórica velhos
correm contra a pele,
quando as lágrimas os soltam
e as páginas inesperadamente se derramam.
E o meu armário fala, fantasma arborescente.
Em vez de um lírio, as minhas fezes na boca,
a espuma da copa. Álcool.
É o mar.
Choro assombrado.

José Emílio-Nelson
em Vida Quotidiana e Arte Menor
.
.
ARTE POÉTICA

Demão depois da lixa, zarcão e betume na madeira, a sonoridade
da tinta nas passagens em que deixei que os crisântemos que
se interpunham fossem mais do verso que os espelhasse. Li até
escurecer os olhos. Abandonado, vale dizer.
Para uns, ainda, a poesia não dispensa
que o autor nas horas certas contemple as flores de papel. Era
assim pacientemente a florescência de um verso crescia no
canteiro. Eu, no toucador, agora debruçado escrevo
vírgulas que, de algum modo, dificultam pelo esforço da repetição
o andar da tarde. E o entardecer deixa que, na dobra das
nuvens, toque o canto rouco que escreve sem balbucios a única
página celeste folheada.

José Emílio-Nelson
em Mosaico
.
.
MAHLER

(A Canção de Deus e Morte)
No jardim das almas
A fala caída.
Como se fosse a canção de
Deus e Morte.
A canção do cadáver
Sombrosa e rente.
Uivo. Brechas.
Ululante.
Compassadamente
O coração solto
Rasgado contra o céu maciço.
E de abismo ou de crateras
Um ardil. Incessante
Profundidade e permanência interminável
Na terra ímpia.
O relâmpago rasteja Deus.
Abre-se a solidão
Nos ombros do Inferno.
Quem vislumbra pérfido
No alçapão da sombra?
E o ricochete da luz?
Que castigo inexpiável?
Haverá uma música da fatalidade?
E quem lhe deve obedecer?
Sou miserável e perturbante.
Dou-me à paisagem destituída.
À árvore devastadora. À borboleta esmagada.
(O restolho enovelando.
Um bestiário precipitando-se.
Sacudindo-me.
Que aurora imprevista
Impulsivamente no mundo?)
Cantava a impaciência
Melancólica.
A dor radiante.
A vastidão.

José Emílio-Nelson
em A Palidez do Pensamento
.
.
NAVETA E COLHER

A Maria Teresa Dias Furtado
Do meu escuro Deus cai a Luz que faz o Corpo em ruína e
Desvela-o a depô-lo cadáver que ciranda e apodrece,
[plácidos
Anjos a consolar, velado por Deus. E não sei:
A Alma é a naveta? Deus é colher? Eu oro.
Reapareço a seguir, nu ou incinerado?

[Mein Gott ist dunkel und wie ein Gewebe (Rilke)]

José Emílio-Nelson
inédito, cortesia do autor para o "uma casa em beirute"
.
.
CÃES

Vou ser asceta, piedade pela cadela.
O chumaço das tetas, vou ser vulgar, lágrimas rosas,
A arrastar a matilha estouvada que a morde à vez, de
[joelhos.
Cadela em fuga, prostada nas urinas,
A rezar, julgo eu, a rezar.

José Emílio-Nelson
inédito, cortesia do autor para o "uma casa em beirute"

*
José Emílio-Nelson, poeta, crítico e editor, é o pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e Silva, nascido em Espinho, em 1948.
.
Obra inclui:

* 1979 - Polifonia
* 1980 - Penis, Penis
* 1981 - Absorção da Luz
* 1982 - Noite Poeira Negra
* 1983 - Polifemo e Outros Poemas (Colectânea 1979-1982)
* 1984 - Extrema Paixão
* 1985 - Nu Inclinado
* 1988 - Queda do Homem
* 1990 - Vida Quotidiana seguido de A Palidez do Pensamento,1990.Reed.aum.:Vida Quotidiana e Arte Menor,1993;A Palidez do Pensamento,1993.
* 1991 -Poesia Vária,1991. Reed.aum.: Sodoma Sacrílega e Poesia Vária,1995
* 1992 - Claro-Escuro ou a Nefasta Aurora
* 1994 - A Cicatriz do Tempo
* 1995 - A Visão do Antigo
* 1996 - Mosaico(Colectânea 1992-1996)
* 1999 - O Anjo Relicário
* 2002 - Humoresca
* 2004 - A Alegria do Mal (Obra Poética I 1979-2004)
* 2004 - Bufão (in A Alegria do Mal)
* 2004 - A Coroa de Espinhos (in A Alegria do Mal)
* 2006 - Pickelporno (Reed. aum. do díptico: A Festa do Asno, 2005 e Gag Gad, 2005 )
* 2006 - Geometrias Galantes (in Comum Presença JE-N e AQF)
* 2007 - Bibliotheca Scatologica
* 2010 - Ameaçado Vivendo (Obra Poética II 2005-2009)
* 2010 - A Coroa de Espinhos segundo (in Ameaçado Vivendo)
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Artigo de Sylvia Beirute
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