sb: série poetas
LIU XIAOBO
Tenho algumas reservas quanto aos poetas da liberdade. Nada tenho contra o tema da liberdade, antes pelo contrário, mas muitas vezes a qualidade poética na exploração do tema fica muito aquém. A poesia é por vezes excessivamente directa, sendo mera reprodução de um lamento, de uma atitude. A poesia, segundo os princípios pelos quais a concebo, deve ser mais do que isso. Deve ser a busca por aquilo que esta ínsito, aquilo que os olhos não vêem mas o coração sente, a invenção de uma linguagem que adivinha todas as compreensões do mundo. E isso tanto é um desafio que se espera do poeta, como um outro desafio por parte do leitor exigente, aquele que se permite entrar dentro de um novo imaginário e interpretar a partir daí. Passa-se o mesmo com outras artes, como por exemplo o cinema: há o cinema de conclusões fechadas e aquele conscientemente mais aberto e de imagens subliminares exigindo de quem vê também uma certa criação. Esta introdução serve o propósito de falar um pouco sobre Liu Xiaobo (chinês tradicional: 劉曉波, chinês simplificado: 刘晓波, pinyin: Liú Xiǎobō; Changchun, China, 28 de Dezembro de 1955), um dos mais brilhantes poetas da liberdade que conheço e que aproveita todos os materiais do poético para fazer eclodir a sua chama sagrada, o seu retrato táctil da realidade que vive no corpo e no espírito. A sua poesia, mais do que remeter para um presente, combate-o na forma como o desarma, como o exibe no coração central de uma infelicidade. Este desarmar do presente incendiário é no fundo a construção lateral de um outro presente feito de gelo, coragem, olhos interiores sobrepostos, ou realidades mitológicas expressas em "versos secretos" e em fantasia lúcida. Liu Xiaobo é um intelectual e activista pelos direitos humanos e reformas na República Popular da China. O fino recorte da sua poesia, eivado de simbolismo e subcaminhos para as mensagens que passa, é indissociável da sua condição de dissidente e de homem por uma causa. Está preso desde 2009, actualmente cumprindo uma pena de onze anos de prisão por "tentativa de subversão do estado" ao emitir a "Carta 08", um documento onde apelava à implementação de reformas no seu país. Estes episódios foram decisivos para a sua eleição como Prémio Nobel da Paz em 2010.
Poemas Seleccionados de Liu Xiaobo:
para a Xia
uma carta é suficiente
para me transcender e enfrentar-te
quando falas
e assim que o vento sopra para o passado
a noite utiliza
o seu próprio sangue
para escrever um verso secreto
que me relembra que
cada palavra é a última palavra.
e o gelo no teu corpo
se dissolve num fogo mitológico;
nos olhos de quem executa
a fúria torna-se pedra.
dois pares de caminhos-de-ferro
inesperadamente sobrepostos, os
insectos embatem nas lâmpadas
de luz, um sinal eterno
que persegue a tua sombra.
Liu Xiaobo
tradução de Pedro Calouste .
ANSEIO POR ESCAPAR
para a minha mulher
abandona os mártires imaginados,
anseio por mentir a teus pés; apesar
de estar atado de morte este é
o meu único dever
quando o espelho transparente
do coração é uma duradoura felicidade.
os teus dedos dos pés não se partirão,
um gato cerca-te por detrás de ti;
eu quero enxotá-lo
assim que vira a cabeça e estende
as garras afiadas para mim;
e bem dentro dos seus olhos azuis
parece haver uma prisão;
e se eu cegamente saísse,
ainda que com o mais pequeno passo,
tornar-me-ia um peixe.
Liu Xiaobo
tradução de Pedro Calouste ..
AURORA
para a Xia
por cima do alto e cândido muro, entre
o som de vegetais sendo cortados,
o limite da aurora, recortado,
dissipado pela paralisia do espírito
qual é a diferença
entre a luz e a escuridão
que parece vir à superfície das aberturas
dos meus olhos; do meu banco de ferrugem
não sei dizer se é o lampejo das correntes
na célula, ou será o deus da natureza
por detrás do muro
a dissidência diária que
faz o sol arrogante
assombrado até não mais
a aurora um vasto vazio
tu num lugar distante
com noites de amor guardadas.
Liu Xiaobo
tradução de Pedro Calouste .UM PEQUENO RATO NA PRISÃO
para a pequena Xia
um pequeno rato passa através das barras de ferro,
anda para trás e para a frente no parapeito da janela,
os muros sem casca vigiam-no,
os mosquitos cheios de sangue vigiam-no,
ele até desenha a lua do seu céu,
a sombra de prata que desencoraja a beleza
como se esta voasse
um homem muito nobre o rato esta noite,
não come nem bebe nem range os dentes quando olha
fixamente com olhos cintilantes e dissimulados
passeando ao luar.
Liu Xiaobo
tradução de Pedro Calouste .
NÃO TENHO INIMIGOS: A MINHA ÚLTIMA DECLARAÇÃO
NÃO TENHO INIMIGOS: A MINHA ÚLTIMA DECLARAÇÃO
(EXCERTO)
cumpro a minha sentença numa prisão tangível, enquanto tu esperas na prisão intangível do coração. o teu amor é a luz do sol que salta os altos muros e penetra as barras de ferro da janela da minha prisão, golpeando cada milímetro da minha pele, aquecendo todas as células do meu corpo, permitindo-me sempre manter a paz, a franqueza, o brilho no coração, e encher de significado cada minuto do meu tempo. o meu amor por ti, por outro lado, é tão cheio de remorsos e lamentos que me fez cambalear perante o seu peso. eu sou uma pedra insensata no deserto, chicoteada pelo vento violento e chuva torrencial tão fria que ninguém se atreve a tocar-me. mas o meu amor é sólido e afiado, capaz de perfurar qualquer obstáculo. e mesmo que eu fosse esmagado e me tornasse pó, eu ainda usaria as minhas cinzas para te abraçar.
.Liu Xiaobo
tradução de Pedro Calouste .
. EXPERIMENTANDO A MORTE
Tinha imaginado estar ali, à luz do sol
com o cortejo dos mártires
um só osso esguio sustentando
uma convicção verdadeira
Todavia, o divino vazio não vai
revestir a ouro os sacrificados
Uma matilha de lobos bem nutridos
saciados de cadáveres
festeja no ar quente e jubiloso do meio-dia
Lugar distante
esse lugar sem sol
onde exilei a minha vida
para fugir à era de Cristo
Não consigo fitar a ofuscante visão na cruz
De um fio de fumo a um pequeno monte de cinzas
bebi até ao fim a bebida dos mártires, sinto a primavera
prestes a romper no rendilhado brilho de inúmeras flores
Noite dentro, estrada deserta
pedalo de regresso a casa
Paro num quiosque de tabaco
Um carro segue-me, atropela a bicicleta
Um par de brutamontes agarra-me
Algemado, olhos vendados, boca amordaçada
atirado para uma carrinha celular rumo a nenhures
Um piscar de olhos, trémulo instante
abre um clarão de lucidez: Ainda estou vivo
nas notícias da Televisão Central
o meu nome mudado para "mão negra detido"
ainda que esses anónimos ossos brancos dos mortos
se mantenham de pé no esquecimento
Ergo alto a mentira auto-inventada
Digo a todos como experimentei a morte
para que "mão negra" se torne a honrosa medalha de um herói
Sabendo embora que a morte
é um impenetrável mistério
estando vivo, não a posso experimentar
e uma vez morto
não posso repetir a experiência
pairo ainda assim dentro da morte
um pairar em afogamento
Noites sem conta atrás de janelas gradeadas
e as campas sob as estrelas
revelaram os meus pesadelos
À parte uma mentira
Não possuo nada
Liu Xiaobo
Tradução de Alberto Gomes
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Obra inclui:
- Critique on Choice - Dialogue with Le Zehou[79]. Shanghai's People Publisher. 1987.
- Aesthetics and Human Freedom[80]. Bejiing Normal University Publishing. 1988.
- Myths on Metaphysics[81]. Shanghai's People publishing. 1989.
- Naked to meet God[82]. Times Literature and Art Publisher. 1989.
- Monologue:Survivors of Doomsday[83]. Taiwan Times Publishing. 1993.
- Contemporary Politics and Intellectuals of China[84]. Taiwan Tangshan Publishing. 1990.
- Selected Poems of Liu Xiabo and Liu Xia[85]. Hong Kong Xiafeier International Publishing Ltd. 2000.
- Under pen name Lao Xia and co-authored with Wang Shuo (2000). A Belle Gave me Knockout Drug[86]. Changjiang Literature and Arts Publishing.
- To the Nation that Lies to His Conscience[87]. Jieyou Publishing. 2002.
- The Future of Free China in our life[88]. Labor Reform Foundation. 2005.
- A Single Blade and Toxic Sword: Critique on Comtempory Chinese Nationalism[89]. Boda Publishing. 2006.
- Sinking of Big Country: Memorandum to China[90]. Yunchen Culture. 10 2009.
(Fonte: wikipedia)
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Artigo de Sylvia Beirute
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Artigo de Sylvia Beirute
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Na Série Poetas: Alejandra Pizarnik; Ana Luísa Amaral; Antonio Cícero; António Ramos Rosa; Cesare Pavese; Edwin Morgan; Fernando Esteves Pinto; Ferreira Gullar; Friedrich Nietzsche; Gertrude Stein; Gunnar Björling; Herberto Helder; José Emílio-Nelson; Leonard Cohen; Pablo Neruda; Ricardo Domeneck; Roger Wolfe; Samuel Beckett; Seamus Heaney; Sylvia Plath; Theodore Roethke; Liu Xiaobo.
Sylvia, magnífico artigo e excelente escolha de poemas e acima de tudo muitíssimo oportuno para alertar consciências e trazer sempre para a primeira página as muitas e muitas injustiças que habitam este nosso Mundo, o qual não tem que se regular obrigatoriamente pela indiferença e faz-de-conta economicista. como slogan diria "a China está mal e tem que mudar não há mais nada a acrescentar". parabéns pela visão poética e pela visão humanista.
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