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domingo, 29 de agosto de 2010

AMADEU BAPTISTA: POEMAS























A NOITE DE PAVESE

Raras vezes me franquearam a porta
e deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,
o estremecimento que corre nos meus ombros.
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.
E quando entro nas casas os meus gestos afeiçoam-se a
alguma coisa enigmática que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida
ou de morte vem comigo. Obviamente, eu abençoo quem
me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra próxima
do amor, um dedo nos cabelos de quem me recebe.
Subi as escadas que vão dar a esta casa em silêncio
e em silêncio aceitei que me aguardassem com as
inefáveis sombras que vejo nos outros e tento decifrar
para meu contentamento. Mandaram-me sentar
e deram-me de beber. Esse álcool
reconfortou-me a alma. E a minha gratidão expressa-se
deste modo, limpo e nítido, observando a mulher nesse
sem fim das coisas, onde todos os mistérios avançam
para uma explicação que a qualquer momento pode irromper 
do espírito como uma explosão.
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar
se recuar à infância e subitamente perceber
que também pertenci ao exercício desta árvore
que nesta sala se levanta. Em frente,
na fotografia que o meu olhar alcança
porque me alcança o olhar que dela
se desprende, inscreve-se o enigma que me fez
aqui chegar, mais que um rumor ou um fio ténue
com o nome de todas as coisas inesperadas que me
aconteceram na vida, sempre que me franquearam a porta 
e deixaram entrar. Agora, com a memória de ter estado
em tua casa e ter recebido a graça de alguma atenção, eu, 
que sou pedinte embora nada peça,
entrego-te este sulco da desordem
sobre a página em branco e agradeço-te
com o conhecimento de um outro mundo
ainda mais inexplicável. Não tendo havido
despedida, sabe que permaneço e na encruzilhada das dores
que me couberam viver 
não esquecerei o teu nome no dia
em que também tiver partido
e mais nenhuma luz houver além daquela
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar. 
Que me seja a alba a tua tolerância.


BILLIE HOLIDAY: SOLO

Não tenho mais visões, não tenho obsessões,
sigo a trompete apenas, a ternura
é esse outro lado das coisas em que me perco
porque nada mais me chama e nada mais
revejo no lentíssimo torpor que pelas veias
senti outrora num azul imenso
que mais do que tocar-me me esvaía
no inferno do mundo e em seus ramais
de pura nostalgia, tristeza e desencanto.
Só ergo agora a voz para esquecer
e ter o olhar toldado para as coisas
que como grito lancinante escuto no silêncio
enquanto outras vozes me chamam,
outros indícios me vêm perturbar
quando pressinto a noite antíquissima
em que se esconde o sobressalto da serenidade 
do meu tempo. Nem já a sombra aguardo
ou o sentido destes brilhos espessos,
estas chamas que consomem o meu corpo
e a minha alma no mistério de tudo
e no liminar enigma que adensa nos outros
os sentidos, certa atenção venal, um desespero
que em fumos e rastros me pergunta
por esta vida que já não é minha
e no coração recebo como salvação e ruína.
Sigo a trompete, o subtil sinal da despedida.
Só ergo agora a voz para esquecer.


INTERVALO PARA LEONARD COHEN

E o mistério? Ainda transfiguramos
o mistério no rastro inacessível da verdade,
ainda trocamos o crepúsculo por outra linha fugaz 
no horizonte ígneo? A sombra fugitiva
que habita o nosso corpo, a alma,
a insegura alma de existirmos?

Nascem e morrem, as cidades,
sucedem-se os dias, as estações, os anos,
esfuma-se o tempo, foge entre os dedos a vida
que nos religa à fuga uma outra vez ainda,
a solidão ameaça, procura-nos a morte
com o medo de querermos instintivamente resistir,
a verdade efémera, o amor.

Outro cigarro?

Outro mistério, ainda,
na auréola de fumo sobre as cabeças
- e o mistério, a que devastação conclama?

O destino das coisas, o mundo de instantes
à deriva?


FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO

Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje
visível no olhar, o 
modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio
marca-te no rosto 
um pouco dessa tristeza avassaladora 
e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que 
há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo 
de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor
da inocência e a infinita doçura de quem foi
perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas 
quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com
as estrelas, sol e noite, 
os mínimos percalços que a natureza desoculta das
sombras e faz  explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.

Amadeu Baptista

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