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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

GONÇALO M. TAVARES: PEQUENAS HISTÓRIAS




















A MÃO

Um homem com um balde de tinta na mão esquerda traça com a mão direita uma linha que separa Berlim. É uma fotografia de 1948. O homem que estava nessa fotografia, ainda novo, é o velho que agora segura na fotografia. Ele olha atentamente para a foto e tenta identificar a rua que ele, sozinho, com um balde de tinta, dividiu em dois - como se a tinta branca fosse suficiente para separar duas formas de entender e actuar sobre o mundo. Mas não pegou apenas em tinta, quando tinha aquela idade. Matou também; e fez ainda outras coisas piores que não contou a ninguém. De qualquer maneira, este homem que agora se vê a si próprio tão novo na foto, este homem agora é muito velho e a fotografia - devido à sua velhice, à perda de domínio dos movimentos - não pára de se mover na sua mão, como se não estivesse estável. É muito velho e não se envergonha de nada do que fez. Apenas tem vergonha de a sua mão estar a tremer.


BICICLETA

Uma bicicleta deitada no chão sem a roda de trás. Um homem pega na bicicleta e tenta pedalar, mesmo sem a roda de trás. Não consegue. Deixa a bicicleta no chão. Volta, passado algum tempo. Traz a roda da bicicleta. Monta-a na parte de trás. Mas essa roda tem o pneu furado. Ele deixa a bicicleta no chão. Surge, minutos mais tarde, com uma bomba de ar para encher o pneu. Enche o pneu. Testa os dois pneus. Sobe para cima da bicicleta, começa a pedalar. Primeiro devagar, depois entusiasmado, cada vez mais rápido. Pedala, pedala, pedala. Vemos o seu rosto eufórico. De súbito, um choque, um enorme ruído. Um automóvel e a sensação de que a bicicleta se partiu a meio. A porta do automóvel a abrir-se, o grito de uma mulher.


IRMÃOS

Um menino caminha com um pequeno tambor nas mãos e, de quando em quando, bate nele de forma displicente, como se fosse obrigado a fazê-lo. Atrás dele uma menina, talvez a irmã mais velha, toca uma flauta. São ciganos. Os dois tocam muito mal. A mais velha bate na cabeça do irmão quando ele pára de bater no tambor.


DE COSTAS

Um homem e uma mulher dobrados a escrever algo, de costas um para o outro, à distância de menos de três metros. O homem escreve no chão da praça principal da cidade o nome da mulher e por baixo acrescenta: amo-te. A mulher escreve no chão o nome do homem e por baixo acrescenta: não te amo!

SOLDADOS

Numa estação de comboios, dois soldados, debruçados sobre o guichet, compram um bilhete. Passa um homem, um vendedor, que traz três muletas na mão. Espera que os soldados comprem o seu bilhete para se aproximar, oferecendo as muletas por bom preço. Mas os dois soldados têm as pernas intactas, caminham normalmente.


MULHER TRISTE

Uma mulher com cara tapada pelo véu negro do chapéu. A mulher tem um ar triste, mas neutro. Está sentada diante de um televisor que exibe um jogo de futebol. Ela assiste ao jogo, mas não mostra emoções. Atrás do seu véu preto continua imperturbável. Escuta-se um ruído e a mulher levanta-se. Fica de pé. Entram dois homens que transportam o caixão. A mulher está de pé, exactamente na mesma posição, imóvel. Os homens abandonam o compartimento, com uma ligeira vénia de respeito, vénias a que corresponde a mulher, fechando ligeiramente os olhos, atrás do véu preto. O caixão está no centro da sala e a mulher não se mexeu. De frente para o caixão olha agora, pelo canto do olho, para as luzes da televisão onde o jogo de futebol prossegue.

Gonçalo M. Tavares
Revista Visão

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