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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

ANTÓNIO RAMOS ROSA - A POBREZA DA POESIA

A POBREZA DA POESIA

A poesia é uma linguagem na linguagem, como disse, se não me engano, Paul Valéry. Nela as palavras da linguagem comum são transmutadas numa metamorfose essencial. Diante da página branca, o poeta é um ser despojado que ignora o que vai fazer, porque nenhuma técnica, nenhum sentimento, nenhuma ética pode predeterminar a eclosão do poema que é uma espécie de relâmpago entre dois pólos (a linguagem e o silêncio ou a consciência e o desconhecido) sem que, no entanto, a palavra atinja a plenitude total, uma vez que ela é apenas o pressentimento de uma palavra absoluta. Assim como há uma cumplicidade imediata do espaço quando nos deslocamos nele ou quando contemplamos uma paisagem, assim o poema insere-nos imediatamente no seu espaço próprio, quer o interpretemos logo, quer nos deslumbremos com o seu fulgor enigmático, sem apreender o seu significado. A poesia é uma invenção livre e aberta mas é ao mesmo tempo uma insurreição vital, a eclosão de insuspeitadas energias que se actualizam na palavra segundo um modo de organização flexível e uma coerência não constrangedora para a sua incoerência essencial. Na medida em que a palavra poética se abre ao informulado, o poeta ignora o que faz e por isso o poema não é uma experiência nem a apropriação de um objecto de conhecimento. O poeta transpõe este momento fugidio, mas total e uno, numa linguagem que tende a preservar esse momento e a dar-lhe continuidade através das vicissitudes e transgressões da operação poética. Daí que o poeta seja um fingidor, como diz Pessoa, porque, embora tendo vivido esse instante de graça, tem de reinventá-lo e transpô-lo num plano em que a conivência com esse momento originário terá de ser uma conversão e não uma tradução ou uma confirmação, uma ficção e não uma reprodução. Se assim é, a leitura poética terá de ter em conta o que ultrapassa as significações a fim de sentir na ficção do poema a pulsação desse momento que precedeu o poema e que o poema reinaugura na sua substância verbal. O poema é, na sua essência, uma realização e uma libertação do silêncio. É o silêncio que converte a palavra numa palavra poética, tornando-a assim irredutível à significação e à determinação do sentido. Porque o silêncio é indeterminável e indefinível e ao ser libertado pela palavra poética não perde a sua indeterminação. Elie Wiesel diz, num número do Le Courrier do Centre International d'Études Poétiques: «Le poète se sert de la parole non pas pour la subjuguer, ni même pour en dégager un sens caché, mais pour en libérer le silence emprisonné avant la libérer elle-même». Por sua vez, Eduardo Lourenço escreveu num artigo publicado há tempos no Jornal de Letras a seguinte frase que eu retive de memória: «Deus é uma não imagem, um silêncio». Esta frase impressionou-me muito e embora não se referisse à poesia, mas a Deus, relacionei-a com a criação poética. É que, em verdade, o silêncio na poesia é uma comunicação essencial com o desconhecido ou o indizível. Ao contrário das palavras dos homens públicos, que falam «subjugando» a palavra, ao contrário dos que têm uma «mensagem» e que supõem possuir a autoridade que uma mensagem requer, o poeta não fala em nome de ninguém, nem dele próprio, inventando o seu caminho, num ritual que se renova em cada poema a partir da página em branco. Por isso as suas palavras são pobres e ao mesmo tempo singularmente ricas, verdadeiras e falsas, fictícias e plenas de substância sensível do real. O poeta dá o que não tem, num gesto que ultrapassa a sua individualidade e assim consagra o Uno, o essencial. Contra todos os sistemas, o poeta mantém viva, pela linguagem, a respiração do desejo.

António Ramos Rosa,
em A Parede Azul
(Estudos sobre poesia e artes plásticas)

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