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sexta-feira, 25 de março de 2011

ANTONIO GAMONEDA - POEMA - A NATUREZA DOS CORPOS




















A NATUREZA DOS CORPOS

A natureza dos corpos é fingir a existência e este conhecimento é o
fim de um espírito rodeado de galinhas ávidas.

Lê nas lâminas de vidro: os argumentos do prazer e os capítulos
da destruição atravessados por um só olhar. Quem fala nesta
transparência?

Só é legível o livro do incerto.

O amolador que possui nas suas cânulas uma só nota, clara como
uma serpente, criadora da infância num espaço de homens vi-
giados, não é mais feliz que a sua própria música destinada ao
inverno.

Assim era o rosto da tua mãe.

A nossa paixão é trivial: um ensinamento atribuído aos pássaros
sobre a neve, aos volumes cuja visão é a forma mais perfeita
da tristeza.

E a convicção cresce unicamente no paladar de homens aptos para
a administração da morte, homens cujas canadas estão cheias
de líquidos mais decisivos que a dor.

Mas, os incrédulos, privados de conduta, que igreja luz nos nossos
gemidos?

Há indícios em narrações impecáveis: o vendedor de figos da ín-
dia cuja pobreza está debaixo da luz e que sorria perto da faca
e a limpeza do seu acto era uma lâmpada incrível, uma pro-
va especial da inexistência coroada de gritos na celebração do
mercado.

Ou, nos jardins do verão, o muro quieto na impossibilidade, exter-
no a uma espessura de linhas invisíveis, uma espessura dotada
de melancolia.

Ou, mais ainda, no teu casaco abandonado e entreaberto, ou seja,
numa forma que descreve o teu desaparecimento.

Esta perplexidade é a consciência. O medo faz de pastor, porém
não sabes mais de ti do que um animal absorto sobre a água.


A contradição está na minha alma como os dentes na boca que
fala de misericórdia.

A confusão está na minha alma e penso em rios ao deslizar a mi-
nha língua pelas mulheres que se apiedam dos meus ácidos. A
minha saúde é lasciva diante dessas grandes janelas.

Estes enxames... E a brancura das tuas costas, caminhante cego
que vais à minha frente, ou, nessas taças polidas pela vertigem,
o alimento azul, o preparado para a hora da morte.

Longos assobios chegam dos pátios. Eu escuto até à hora mais tar-
dia e o mundo é vazio e a beleza dos adultérios ferve no fundo
dos copos de noite.

Assim é a véspera de um dia. O leite anuncia a manhã.

Quem entrou nos meus ouvidos?

Antonio Gamoneda
em Descrição Da Mentira
Quasi Edições
Tradução de Vasco Gato
.

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