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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Eduardo Sterzi sobre Paulo Francis



























A DIALÉTICA DA IMPIEDADE - Paulo Francis

Eduardo Sterzi*

Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
O Diabo, num conto de Machado de Assis



Os paradoxos seguem provocando-nos espanto, como se ignorássemos que, nos jogos sérios do intelecto, precisamente o paradoxo constitui o momentum de refulgência da verdade. Eventuais antagonistas de Paulo Francis, e mesmo alguns comentadores simpáticos aos seus escritos, acusaram o caráter paradoxal de seu percurso político, sua trajetória do trotskismo da juventude para o liberalismo da maturidade. Os mais atentos entre estes observadores devem ter percebido que o paradoxo, antes de ser um dado resultante de uma evolução ou degenerescência diacrônica, esteve sempre vivo no seio de cada uma dessas posições extremas, e, se o Francis comunista podia ser escandalosamente elitista em seus gostos e posições, o Francis conservador também mostrou-se eivado de um anarquismo insopitável.

É por artes do paradoxo que a mística da convivência com os poderosos, tão flagrante em seus textos, e à qual não faltavam mesmo traços de lacaiagem, praticamente não se diferenciava do desnudamento impiedoso da mecânica do poder. Seus livros mais pessoais, O Afeto que se Encerra e Trinta Anos esta Noite , assim como seus romances, Cabeça de Papel e Cabeça de Negro, são elucubrações, obliquamente apologéticas, sobre a classe dirigente, e também, não em menor medida, fantasias egocêntricas e até paranóicas acerca de sua própria centralidade nesse contexto. Não obstante, todos encerram-se com o desencanto de quem se descobre enfim impotente, ainda que mais sábio pelo reconhecimento dessa impotência. Por força da reflexão, o desencanto transcende a individualidade. Observe-se a transição da primeira pessoa do singular para a equivalente do plural no encerramento de Trinta Anos esta Noite: «O 1964 fez de mim, da minha geração, homens adultos. Vivíamos de ilusões, nos imaginando senhores do Brasil de que gradualmente tomávamos posse. Escapuliu, não é de ninguém, é o que quisermos fazer de nossas vidas».

Francis jamais camuflou seu desprezo pelos (para falar como Mallarmé) «reporters par la foule dressés à assigner à chaque chose son caractère commun». Foi tão pouco jornalista, se pensarmos na devoção ao clichê que se associa comumente a essa profissão, e, no entanto, é impossível conceber suaœuvre (a pomposa voz francesa deve soar aqui com meditada ironia) fora do ambiente jornalístico. Há precursores célebres nessa aparente contradição, como o norte-americano H. L. Mencken e o austríaco Karl Kraus. «Jornalismo é a segunda mais antiga profissão»: a frase de Francis poderia constar sem demérito dos Sprüche und Widersprüche de Kraus. A lógica comercial da imprensa contemporânea, que mal consegue disfarçar o desdém pela inteligência do leitor sob a máscara do facilitamento e da empatia, é a lógica de um bordel destinado ao fracasso, um bordel em que as meretrizes deixam-se seduzir noite e dia pelos clientes. Francis alertou com perspicácia: «O mal da imprensa é que ela não ousa mais desagradar o leitor». O cumprimento da urgente tarefa pedagógica da imprensa depende dessa ousadia. O esclarecimento do leitor é sempre um ato de relativa violência. Ninguém aprecia ser confrontado incessantemente com a própria ignorância (e tornar-se ciente da ignorância, como sabemos desde Sócrates, é o passo primeiro rumo à sabedoria).

Maior leitor de Freud entre os jornalistas brasileiros, Francis estava cônscio de que toda atividade intelectual constitui-se pela sublimação de nosso intrínseco instinto de agressão, mas sabia também que essa sublimação não corresponde a uma completa anulação, e sim a uma transfiguração e extensão da agressividade. (Datava sua agressividade da separação da mãe, aos sete anos, quando foi enviado para o internato, e persistiu em sua escrita o tom do menino que contém o choro para não parecer maricas. Não sem ambivalência, elucidava seu sarcasmo como «a irritação do amante rejeitado».) A consciência desse cerne agressivo fez dele, mais do que um jornalista, um crítico. Porém, enquanto tantos exercem a atividade crítica de modo adjetivo, Francis a desempenhou de modo substantivo. Não foi, a não ser nos seus primeiros anos de imprensa, um crítico teatral, um crítico literário, um crítico cinematográfico... (em todas estas qualificações, o segundo termo é o mais relevante). Foi um críticotout court. Walter Benjamin, numa das irônicas treze teses acerca da técnica do crítico, delineou o ethosperverso dessa estirpe: «Só quem é capaz de aniquilar é capaz de criticar». Isso não significa, é claro, ao contrário do que possa parecer, que o crítico deve sempre aniquilar. O número de elogios, nos textos de Paulo Francis, não era muito inferior ao de reprovações. No entanto, pode-se dizer que a possibilidade sempre iminente da aniquilação anima cada sentença, transformando mesmo os encômios em promessas sibilinas de futuros ataques. «Estamos sempre em guerra. Apenas não percebemos algumas...», ele escreveu certa feita. (Contudo, inúmeras referências positivas a velhos conhecidos, alguns deles merecedores óbvios de uma certeira impiedade, eram determinadas por aquela má cordialidade detectada por Sérgio Buarque de Holanda no Volksgeistbrasileiro.)


Davi Arrigucci Jr., anatomizando o estilo desenvolvido por Paulo Francis em seus livros e colunas, identificou-lhe como distintivo «uma frase de tropelia, em que se acumulam coisas», «uma construção que consiste em imitar o aparentemente não- construído». Com agudeza, nota que ele queria conferir à língua literária luso-brasileira «uma capacidade de alusão que ela não tem». O método de Francis era designado por ele mesmo como «raciocínio em bloco»: ponderar qualquer tema à luz de todo o conhecimento acumulado, e não só sobre aquele assunto. Havia sempre uma referência a mais, muitas vezes dissonante, que iluminaria nossa compreensão, ainda que fosse por acentuar a possível complexidade do objeto em exame. Francis invejava George Bernard Shaw, entre outros motivos, por enfileirar mais de 90 citações ou alusões em apenas duas páginas. O objetivo tático dessa ênfase na quantidade parece evidente: esmagar qualquer possibilidade de reação.



O tropo característico de Francis é a hipérbole. A meta da retórica do exagero foi bem descrita por La Bruyère: «A hipérbole ultrapassa a verdade, levando assim o espírito a conhecê-la melhor». Arrigucci, sublinhando o «completo paroxismo» – denominação ela mesma hiperbólica para o tônus hiperbólico – que domina Cabeça de Papel, observou que a onipresença do álcool e da cocaína no livro são índices da exigência ininterrupta de uma «embriaguez completa». Segundo Arrigucci, é essa embriaguez que provê «um estado propício à epifania». Há uma declaração de Francis que nos ajuda a determinarmos o que se revela nesses instantes epifânicos. Ele confessa: «Bebi muitos anos. Para ficar bêbado. Não posso imaginar outra razão. O bebedor social é coisa de pequeno-burguês». Pode-se supor, portanto, que se revela a possibilidade de um mundo contrário àquele que percebemos quando sóbrios, mas também refratário às ilusões baratas propiciadas pela tímida embriaguez dos filisteus. Para Francis, a nostalgia pela cultura aristocrática, desaparecida com a emergência da cultura de massas, não era mais do que um preâmbulo irônico da invocação de uma barbárie renovadora. Não por acaso, em seus romances, uma exegese da dialética entre cultura e barbárie em The Second Coming, de Yeats, ocupa posição proeminente. A cultura aristocrática e a nova barbárie (profetizada por Benjamin) irmanam-se ao permitir-nos discernir o (suposto) real valor e significado das coisas.


Lampejos bárbaros já se encontram no seu reducionismo às vezes grosseiro, o qual, em parte, ele herda da tradição decarmudgeons como Mencken. Este, por exemplo, ao analisar os problemas causados a Wagner por sua primeira esposa, Minna Planner, que queria vê-lo escrevendo óperas à moda de Rossini, conclui: «Minna era cantora – e tinha cérebro de cantora». Francis não se envergonharia de uma tal observação. Todo conhecimento, no fundo, exige a redução do objeto cognoscível a um vocabulário que lhe é alheio, e o reducionismo de Francis não era mais do que a aplicação paroxística (hiperbólica), e mesmo caricatural, desse princípio. Podemos recordar os notáveis apontamentos sobre Milan Kundera: «Como é feio Milan Kundera. Parece um macaco». Talincipit não promete mais do que algumas risadas. Todavia, depois de algumas digressões sobre a «amargura de não ser bonito, quando jovem» – amargura que, como se pode perceber pela tonalidade do texto, e sobretudo por suas repetições algo compulsivas, não deveria ser estranha ao próprio Francis – , ele retorna à avaliação de Kundera: «O que seu pai e mãe lhe diziam sobre a vida lhe parecia besteira, mas, não conseguindo ainda formar argumentação para contestá-los, fingia, até certa idade, concordar. Talvez tenha tentado fazer esportes e sair em grupo de rapazes à baderna, freqüentando bordéis. Mas sempre com a consciência de que não é bem assim. Em geral, é um livro que se lê na adolescência que descola o mundo, só dele, que o escritor é capaz de criar. Suspeito que em Kundera de ve ter sido algo de Nietzsche, ele me parece muito nietzschiano, se bem que cuida muito de criar mulheres adoráveis, corações simples, na frase de Flaubert, como Teresa em A Insustentável Leveza do Ser e Agnes em Imortalidade. ‹Sai para lá, macaco›, talvez uma bela menina checa tenha dito a Kundera, nalgum baile. E ele foi se masturbar. O conteúdo masturbatório da sua obra é um dos maiores que conheço». Francis, ao contrário de Kundera, deparara primeiro com a antecipação da filosofia de Nietzsche por Dostoiévski, tendo aprendido com Crime e Castigo, lido aos 14, que o ser humano é capaz de racionalizar qualquer ato, por mais abjeto, e que, por isso mesmo, apietas é necessária, para impedir-nos de aniquilarmos uns aos outros. Porém, a dialética nietzsche-dostoievskiana também poderia ser reformulada e o produto final ser a impiedade. Francis evoca Nietzsche em seu relato sobre o golpe militar de 1964: «Tudo é versão. Há outras versões além da nossa». Frisou, afetando candura, apresentar seu livro «nesse espírito de uma longa conversa». Porém, o mesmo Francis, em outra ocasião, negaria a serenidade do espírito dialógico: «O desfecho de toda conversa masculina é que nos reasseguremos da nossa sapiência e da basbaquice do próximo».


Comentando os diários de Samuel Pepys, ele nota que «homens de intelecto esgrimem idéias comojongleurs». Que o bufão fosse também ophilosophe da corte é talvez a causa secreta, para além das idéias porventura esgrimidas, da impaciência de certos leitores. Paulo Francis percebeu, e desempenhou, como poucos a dimensão eminentemente estética da crítica, isto é, do pensamento que, antes de mais nada, coloca em xeque seu próprio estatuto, dramaticamente. Em 1917, Franz Rosenzweig descobriu um documento fragmentário que ficou conhecido como o primeiro «programa sistemático» do idealismo alemão. Sua autoria resta incerta, embora seja certo que Schelling, Hölderlin e/ou Hegel, de maneira individual ou em conjunto, são os prováveis autores (tendo a aceitar a sugestão borgiana de Bento Prado Jr . de que se trata de um pastiche elaborado por Hölderlin a partir das discussões filosóficas de seus dois colegas). Ali, afirma-se, com uma limpidez inencontrada algures, que «o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Idéias, é um ato estético». Na modalidade de crítica irrestrita praticada por Francis, como na arte, aaparência constitui aessência. Daí a importância do estilo, tão inconfundível. «Poesia, em última análise, tem apenas a verdade que cria»: o axioma proposto por Francis poderia ser utilizado, não sem complicações, numa avaliação de sua própria escrita. Embora ele mesmo considerasse «discutível» sua tendência de «reagir a pessoas e acontecimentos como se fossem obras de arte ou cenas de teatro», não saberia agir de outra maneira. Seria abdicar de sua personalidade, o patrimônio do crítico.


A dominância estética de sua prática reflexiva certamente obscurecia algumas nuanças dos assuntos abordados. No entanto, a própria forma, quando se torna essencial, diz mais do que é dito pelas palavras. O aspecto cada vez mais estilhaçado de sua escrita, por exemplo, é eloqüente, mais eloqüente do que qualquer uma de suas prédicas estabanadas, quanto à perda da totalidade do mundo. Se o conto, como ele argumentou certa vez, correspondia melhor do que o romance à fragmentação de nossa experiência, a crítica quiçá lhe corresponda melhor do que qualquer forma de ficção. Agradar-lhe-ia o anacrônico epíteto de «homem de letras», conforme admite em Trinta Anos esta Noite. Esta designação, respeitosa, dá a medida, no entanto, do fracasso de Francis como autor de literatura imaginativa, fracasso que talvez não seja tão seu quanto do próprio tempo que lhe tocou viver.



Em entrevistas e programas de televisão realizados nos meses anteriores à sua morte, ele repisou a blague de que se sentia «tecnicamente morto» em face do mundo contemporâneo. Mesmo uma frase como «Wagner é uma forma de vida alternativa» corteja a desaparição. É arcanamente elegíaca. Em 1994, já concedera que gostaria de ser «o fantasma do Metropolitan Museum, escondido durante o dia e saindo à noite para olhar o que há». Porém, essa figuração irônica da morte encontrava contrapartida numa angústia que transcendia a mera vaidade de existir: «Não posso acreditar que minha lucidez um dia não exista mais, insuficiente como a considero, mas é minha, é o que sou». Reitera-se, assim, opathos da traição, origem de toda agressividade, brilhantemente registrado por um Manuel Bandeira embebido de Shakespeare (o Shakespeare de King Lear e deMacbeth), em Momento num Café: «a vida é uma agitação feroz e sem finalidade», «a vida é traição». Só esse misto inextricável de lucidez e embriaguez – lúcida embriaguez, lucidez embriagada –, essa disposição para experimentar a vertigem da auto-extinção, pagando os custos de tamanha impiedade, franqueou-lhe a visão da verdade. Duvido que os leitores apressados, os típicos leitores de jornais, souberam desfrutar a poesia do desencanto presente numa consideração como a seguinte, sobre os conflitos raciais na África do Sul: «Há situações para que simplesmente não existe uma solução clara e sentimentalmente satisfatória». Livre da mauvaise conscience que anima a maioria dos intelectuais, Francis podia inferir: «Libertação sexual, feminismo,gay lib e essa fuzarca de drogas são essencialmente consumismo levado a seus extremos lógicos. Afirmam todos o que o mercado significa, isto é, que tudo é permitido desde que haja freguês».

Para ele, parece não ter existido nenhum tabu, nenhum interdito ao pensamento.Nada melhor pode ser dito sobre quem dedicou a vida ao nobre desígnio do intelecto. Pronunciadas com ênfase dosada, não sem certa ambigüidade, tais palavras compõem a divisa apropriada à hagiografia de um endemoniado.



* Jornalista, mestre em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutorando em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Este ensaio foi publicado originalmente no Jornal da Universidade (UFRGS).

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