Cega-te para sempre
Cega-te para sempre:
também a eternidade está cheia de olhos
lá
se afoga o que fiz caminhar às imagens,
ao terminus em que apareceram,
lá
se extingue o que da linguagem
também te apartou com um gesto,
o que deixavas iniciar-se como
a dança de duas palavras somente feitas
de outono e seda e nada.
*
Elogio da Distância
Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.
Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:
Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.
Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.
Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.
Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.
*
Fala Também Tu
Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.
Fala —
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.
Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.
Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.
Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?
Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.
*
O Companheiro de Viagem
A alma da tua mãe flutua adiante.
A alma da tua mãe ajuda a noite a navegar, escolho após escolho.
A alma da tua mãe fustiga os tubarões à tua frente.
Esta palavra é a disciplina da tua mãe.
A discípula da tua mãe partilha o teu jazigo, pedra a pedra.
A discípula da tua mãe inclina-se para a migalha de luz.
*
In Memoriam Paul Éluard
Depõe no túmulo do morto as palavras
que ele pronunciou para viver.
Deita-lhe a cabeça entre elas,
fá-lo sentir
as falas da nostalgia,
as facas.
Depõe sobre as pálpebras do morto a palavra
que ele recusa àquele
que o tratava por tu,
a palavra
que viu passar por ela o sangue do seu coração,
quando uma mão, despida como a sua,
atou aquele que o tratava por tu
às árvores do futuro.
Depõe-lhe esta palavra sobre as pálpebras:
talvez
surja nos seus olhos, ainda azuis,
um outro, mais estranho, tom de azul,
e aquele que o tratava por tu
sonhe com ele: Nós.
*
Diante do teu rosto tardio
Diante do teu rosto tardio,
so-
litário entre
noites que também me transformam,
algo se imobilizou
que já outrora estivera connosco, in-
tocado por pensamentos.
*
Sóis desfiados
Sóis desfiados
sobre o deserto cinzento-negro.
Um pensamento alto-
-como-árvore
capta o tom da luz: ainda
há canções para cantar do outro lado
dos homens.
*
Coração Inconstante
Coração inconstante, a quem a charneca edifica a cidade
no meio das velas e das horas,
tu sobes
com os choupos até aos lagos:
aí talha a flauta, de noite,
o amigo do seu silêncio
e mostra-o às águas.
Na margem
vagueia embuçado o pensamento e escuta:
pois nada
surge com a sua própria forma,
e a palavra, que brilha sobre ti,
crê no escaravelho dentro do feto.
*
Flor
A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.
Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do verão:
flor.
Flor - uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca de água.
Crescimento.
Folha a folha acrescenta
as paredes do coração.
Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.
*
De todas as feridas
Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
Só uma vez no Outono a pedra reverdece - foi ontem;
foi quando o sal nas ruas era tão vermelho,
tão vermelho que se pensaria que era chegada a hora
a que se acena com os véus da meia-noite:
o tempo-de-tulipas dessa hora
em que o desejo enche o copo de toda a gente,
o berço e o caixão de toda a gente,
as pegadas de toda a gente -
a hora que liberta do gelo o teu olhar,
te faz arregaçar a tua sombra
e arranca aos sinos o seu silêncio quando danças.
Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
foi ontem
e jaz no sangue com nós dois
*
Sete rosas mais tarde
Reunido está o que vimos,
para despedida de ti e de mim:
o mar, que nos lançava noites para a terra,
a areia, que as atravessou connosco,
a urze vermelho-ferrugem além
onde o mundo nos aconteceu.
*
Orvalho
E eu deitado contigo, tu, no lixo,
uma lua lamacenta
atirou-nos com a resposta,
nós separámo-nos aos bocados
e voltámos a esmigalhar-nos juntos:
O Senhor partiu o pão,
o pão partiu o Senhor.
Paul Celan (poeta romeno - 1920/1970)
O nome de nascimento de Celan era Paul Antschel. Oriundo de uma família judaica de língua alemã, foi vítima da perseguição nazi: o seu avô morreu num campo de concentração e ele próprio sobreviveu milagrosamente ao holocausto. Em 1948 foi viver em Paris, onde se estabeleceu definitivamente. As suas experiências traumáticas, assim como as dos seus companheiros de sofrimento, influenciaram profundamente sua obra lírica, impregnada de formalismo e de traços surrealistas. O poema Fuga da Morte, publicado na compilação Mohn und Gedächtnis (1952), é, do ponto de vista artístico, uma das mais importantes criações em língua alemã sobre o extermínio nazi dos judeus. A sua obra posterior, tomando como ponto de partida a colecção de poemas chamada Sprachgitter (1959), surpreende pela força das imagens literárias, nem sempre fáceis de decifrar. Celan suicidou-se em 1970.
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