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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Coisas que Nunca - poemas de Inês Lourenço


























MAMOGRAFIA DE MÁRMORE

Deliciam-me as palavras
dos relatórios médicos, os nomes cheios
de saber oculto e míticos lugares
como a região sacro-lombar ou o tendão de Aquiles.

Numa mamografia de rastreio,
a incidência crânio-caudal seria
um bom título para uma tese teológica.

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax
de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma
de Nemésio, para não referir os vermelhos de hemoptise
de Pessanha ou as engomadeiras tísicas
de Cesário.

Mas nenhum(a) falou (ou fala)
de mamografia de rastreio. Versos dignos
só os de mamilo róseo desde o tempo
de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa, só restaram óleos e
mamografias de mármore.

*

BERCEUSE

Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.

Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios. Os
pedreiros deixaram de cantar à pedra:

Hou! pedra, hou!
Hou! linda pedra, hou!

e as canções de trabalho (uma espécie
de berceuses da fadiga) passaram
a matéria etnográfica. Por isso os
estudantes de português já não entendem
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura ou
Sete anos de pastor Jacob servira.

Mesmo o Schöne Müllerin do Schubert que
se ouve ainda nos concertos clássicos
com vaga subserviência patega
(porque em alemão, não se percebe nada),
só os amantes do lied reconhecem.

E se percebessem?
A moleira já não seria schön
e não teria 80 anos, bem bonito rol
como a de Junqueiro,
pela estrada fora, toc, toc, toc, mas agora reclusa
numa casa geriátrica, em contagem crescente
da inacção.

Muito pouco,
tão pouco, para um mundo
embalado na pesquisa espacial
de água em Marte.


*

NEVE NAS TERRAS ALTAS

No Inverno sempre
neva com intensidade no maciço central. Muitas
estradas de acesso à Torre estão interrompidas. Os enviados
da televisão aparecem nas reportagens de gorro e gola
levantada a entrevistar os habituais
excursionistas.

Mas, da neve recordo um filme
português onde se viam crianças com
um prato de neve na mesa. Vi-o
num verão de Lisboa, numa sala de estúdio climatizada.
Os parcos espectadores
estavam enregelados, vestidos para o estio e a sofrer
civilizadamente aquele frio real e diferido.

Que mais me lembra a neve?
Talvez o meu pai a pôr pedaços
de algodão-em-rama, num galho alto
do pinheiro de natal. Ou o rio
Neva, em S. Petersburgo, perto da casa
de Puskine onde gritei Cesário:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo,
o Mundo.

O resto é branco ou banal.

*

FELINUS

A Maria Tobias era preta
e branca. Na parte branca era
Tobias e era Maria na preta. Morou
connosco cinco anos. No sexto, numa
quinta-feira santa pôs-se a dormir
depois de um longo jejum. Ficaram-nos
nas mãos festas desabitadas e os poucos
haveres: uma malga, uma manta, um bebedouro,
que não lográmos enviar
para a nova morada.

*

RECADO A UM JOVEM POETA

Continua agreste para o mundo
e conforta-nos com a lucidez
do teu desconforto, nas palavras
de todas as horas, limpas de
hemorragias órficas. O novo Castelo
de Duíno (ou outro qualquer)
é um terceiro andar, sem ascensor,
onde Lou-Andreas-Salomé deixou
de velar com elegância
a angústia.


Inês Lourenço
em Coisas que Nunca, & Etc, 2010

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