Caderno de hesitações 03
Arrecadei os pedaços de papel
(todos os meus haveres)
e vim viver para esta rua,
para esta cidade que não me conhece,
nem mesmo os vizinhos, emigrantes,
acondicionei tudo e empreendi a viagem,
trazendo comigo a caixa de correio,
vazia,
onde agora colocam panfletos de poesia
pop,
instruções de produtos de limpeza,
programas de turismo sénior,
aparelhos auditivos - poupar no IRS.
Fechei-me na imensidão de folhas
de Outono, julgando revertê-las
ao cerne da floresta,
que caiba inteira na rua estreita,
para onde transportei, de outro lado,
a minha própria solidão.
*
Poeira e música
Os festivais de verão vão a meio,
sudoeste incluído,
no talão de multibanco
escrevo um poema sem saldo,
aparentemente vazio,
alguns dígitos rememoram
a grafia distante de versos,
as gotas daquele inverno,
obliquamente impressas no papel:
a transferência foi efectuada
com sucesso.
*
Na representação da noite
eu, tu e o outro em vasos comunicantes,
corpos líquidos gesticulando,
flowing free, na prateleira existem
livros estacionados em segunda fila
à beira do extermínio
livros transgressores, transgredindo
o corpo nu da palavra
tu e o outro abandonaram
este texto quase desistência
de intertextualidade
prefiro pensar que a pista de asfalto
surge velozmente por detrás
da vírgula, provocando-me
o acidente da linguagem
a escrita imprime o sulco das tuas
nas minhas mãos.
*
(na impossibilidade feminina da tarde)
as mulheres que não toco com os dedos,
que não ouso tocar
as mulheres impossíveis
seres esbeltos como gazelas
no deserto da minha tarde
as mulheres que imaginadas,
vejo à distância de um olhar
são mais reais para outros
só para mim um rasto de impossibilidade
é nesse intangível que transporto no peito
que as mulheres são mais belas
a impossibilidade doirada das suas mãos
mergulha neste meu templo-espelho
onde as observo e quase as posso tocar
Paulo da Ponte
publicado {aqui}
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