FÉ NOS HOMENS DE BEM
esquecer a dor nos ossos na perna esquerda nas costas ao fundo esquecer que qualquer coisa se desagrega esquecer as queixas esquecer aquilo que se pensa e custa aquilo que se pensa e custa aquilo que se pensa e custa esquecer o que falhou o que irá falhar o que não falhará e o modo como isso importa cada vez menos e como isso vai sendo mentira esquecer os amigos mortos os amigos longe os amigos esquecidos os amigos negligenciados os amigos que na verdade são outra coisa qualquer esquecer as estradas as paixões a ansiedade esquecer antes esquecer o frio nos pés e nas mãos e articulações
e pensar que são apenas dores de crescimento.
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QUATROZEROZERO
e não há deus não há palavras que queiram ser ouvidas não há espaço não há ninguém
lá fora as coisas estão mortas estão quietas
e as minhas mãos enquanto me dispo e me olho num espelho contra a parede encontrando sinais novos tatuagens pulseiras anéis os meus dedos encolhendo-se timidamente num punho
e afinal o meu corpo ainda reconhecível por debaixo de tanta coisa tanta roupa tanta gente
porque o meu corpo preso a qualquer coisa anos atrás ou eu agora um pouco deslocado
mas, enfim, as coisas existem mesmo que
quatrozerozero e pouco a querer ou muito a querer ao mesmo tempo como demasiado líquido de uma só vez a ser bebido e uma terrível e súbita falta de ar, urgência da flor da água ou
quatrozerozero e tanta gente na rua tanta gente a beber e com quem beber com quem falar com quem sorrir e segredar qualquer coisa absurda - um prazer secreto uma culpa doméstica - porque há música e actores e escritores e poetas e o ruído indistinto de toda esta gente carregada com coisas dentro delas, pintores e bailarinos e conversadores obcecados com a modernidade do mundo
talvez quatrozerozero a pesar-me nos braços e mesmo que não haja deus ou culpa nisto tudo ou isto tudo lá fora enquanto eu e o meu corpo pelo espelho contraído num punho tímido
por que não culpar o mundo que falhou terminar há dez anos
por que não culpar os eléctricos
os pombos
os passeios em desalinho
as viagens de táxi
os textos que não se escrevem
as músicas que não se fazem
quatrozerozero
e largar o espelho
e o corpo deitado
e secretamente acreditar que teremos sempre
deseperadamente querer ter sempre
uma ou outra coisa que possa ser amada,
invariavelmente complicada invariavelmente difícil invariavelmente boa.
João Silveira
publicado no Outli()er
só hoje é que reparei nestes poemas aqui - muito obrigado! Sinceramente.
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