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domingo, 26 de setembro de 2010

LENDO CHARLES BUKOWSKI




















ON READING BUKOWSKI EM PONTA DELGADA
por Vamberto Freitas

Não, não tenho os mais de 45 livros de Charles Bukowski publicados em vida e após a morte, nem lá perto, mas tenho uma boa e essencial colecção da sua obra há muitos anos na minha estante. Bukowski faleceu em San Pedro, Califórnia, em 1994, aos 73 anos de idade. Para a quantia de cigarros e charutos que fumou enquanto bebia litros de cerveja, vinho e outras substâncias celestiais mas mortais, nada mal. Ou então tudo não passou de uma pose bem urdida ao longo da vida. Estou em crer que escrever tanto como ele, só com muitas horas, dias e anos de sobriedade. Alguns dirão que a sua mais do que “conturbada” prosa e poesia desmente precisamente este meu último palpite. O facto é que ele deixou as mais atrevidas, corajosas e indecentes páginas na literatura norte-americana de todos os tempos, nem Hunter S. Thompson se tornou a sua sombra na literatura da maldição, e Henry Miller parecerá um menino de escola dominical ao seu lado. Escreveu ao mesmo tempo dos Beat, a que alguns críticos ainda tentam associa-lo, mas ele só derramou desprezo sobre esses que ele chamava de oportunistas, os que desfrutaram do recém-descoberto amor que a Academia esquerdizada passou a dedicar a todo e qualquer rebelde intelectual a partir dos anos sessenta.
Bukowski levou ao extremo na sua vida pessoal e de escritor nada mais, nada menos do que a Pregação Americana do Individualismo: que a sociedade me deixe em paz, não se preocupe comigo, que eu sobrevirei como quiser e entender. Quanto às grandes ideias e ideais, estamos falados: dá no que tem dado, não me incluem no projecto ou no sonho. Nascido na Alemanha em 1920 de pai americano e mãe alemã, levado para a Grande Los Angeles aos três anos de idade, a sua vida foi sempre de desobediência amena aos ditames da cultura nacional e dos compatriotas vizinhos, esses que eu próprio conheci tão bem durante quase 27 anos a cortar e regar a relva aos sábados e a mexericar sorrateiramente tudo em sua volta, exactamente como num famoso conto de Raymond Carver. O filme “Barfly” feito em Hollywood, gente e cidade que ele só “usava” para cravar os seus magnatas ricos, hipócritas quase sempre no seu, digamos, “amor” por Bukowski, e sem grande imaginação, mostra-o na sua vivência sem regras: marginal, bêbado, sem vontade de trabalhar, amante por algumas horas e de companhia incerta, escritor (na altura) incipiente e sem noções de qualquer grandeza ou significado. Enfim, o supremo invejado de quem sonhou um dia ser verdadeiramente livre, mas sem ter necessariamente de dormir sob uma ponte. Tudo isso transparece em directo na sua prosa e poesia até ao fim da sua longa carreira. É certo que a poucos anos de morrer já desfrutava de algumas benesses (carro novo e vinhos mais finos, supõe-se), provindas da sua crescente fama no estrangeiro e no seu país.
Que tem de especial uma leitura ou (re)leitura de Bukowski em Ponta Delgada? Acontece que numa tarde de Domingo, de céu cinzento e tempo ameaçador, encontrei alguma poesia de Bukowski numa feira do livro local, que tem obras americanas em primeiras edições, graças à globalização em curso, digam outros o que disserem: Come On In! (New Poems), póstumo como ele havia planeado. Vim para casa e diverti-me à brava. Não foi só a delícia de ler inesperadamente mais uma vez Bukowski, olhando para solidão que é o mar dos Açores em dias como estes, como é o sentimento de estar sempre “longe aqui”. Depois, o contraste da liberdade absoluta de um poeta do mundo, mesmo que sempre quieto em casa, mas atento à tremenda ebulição das ruas, dos bairros, das cidades em redor, com a tímida vida de uma sociedade fechada e ainda cheia de medos e complexos de toda a ordem. Na sua linguagem crua, áspera, ofensiva, brutal, directa, Bukowski terá outra “mensagem” para cada um dos seus leitores: o “mundo” és tu, só pode ser tu, está em ti e dentro de ti, não culpes nem o lugar nem os outros, vive como quiseres, e mantém-te atento às tentativas de te vergarem a seu gosto e para o seu interesse. Fernando Pessoa, naturalmente de modo muitíssimo diferente, já tinha dito isto, mais ou menos, quando rejeitava para sempre ser “tributável”, como o queriam e o desejavam. Só que para além das suas imparáveis blasfémias contra a sociedade ou contra quem lhe aborrecesse num determinado dia ou circunstância, Bukowski escondia em si uma imensa erudição de autodidacta -- literatura europeia e americana, música clássica, especialmente – de que poucos outros escritores do seu atribulado tempo se podem gabar; não a ostentava nunca, deixava-a cair estritamente ao serviço de um outro poema, como fundo tranquilizador das suas noites solitárias, ou, mais raramente, como arma satírica na denúncia ou apreciação de outros escritores mais famosos e citados. É claro que foi sempre um autor de culto, no seu país e ainda mais no estrangeiro, particularmente na Europa. Tem todos os seus livros traduzidos em algumas doze línguas, fenómeno pouco habitual até entre os modernos mais canónicos em qualquer parte. Olhar para uma foto de Bukowski em todas as fases da sua vida, é ter medo dos estragos que o corpo humano pode sofrer, mas será também uma fonte de inspiração quando nos damos conta de como o espírito humano livre e determinado poderá sobreviver intacto, e até vingar gloriosamente, no assustador labirinto das sociedades modernas, que tenta aprisionar ou desviar algumas vidas.
Come On In! traz pouco de novo na vasta obra de Charles Bukowski, e creio que os seus fiéis leitores assim o desejavam – o regresso contínuo ao mundo íntimo e desvairado do seu poeta maldito, atirando o seu fogo em todas as direcções, raramente poupando-se a si próprio, ferida aberta desde a sua juventude sangrando, primeiro nas ruas do seu desespero, e eventualmente em páginas de absoluto corte com a Tradição literária do seu país, reinventando estéticas e alargando brutalmente o campo temático da poesia confessional que antes ou paralelamente com a dele se escrevia. You’re just a drunk who writes, said his wife/that’s better than a drunk who just drinks, said the writer.
Que ninguém se engane: do intimismo radical de Bukowski surgem retratos claríssimos de uma outra América, aquela que os americanos sempre pretenderam não existir fora dos seus guetos supostamente invisíveis e intocáveis. Façam o favor de entrar neste seu sujo e perigoso reduto. Ninguém em seu perfeito juízo quereria tal vida; resta-nos, isso sim, o fascínio de o ler e de o acompanhar ao longe nas suas sagas “loucas”, talvez as únicas que restam aos verdadeiramente corajosos. Bukowski viveu muitos dos seus anos de vida literária activa em bairros da classe média de San Pedro, sítio improvável para o quotidiano de um escritor da sua eventual estatura. Seria quase como que um outro desafio seu à placidez e pretensiosismo dos que perseguiam os outros sonhos da pregação oficial.

Vamberto Freitas 

1 comentário:

  1. existe um óptimo trabalho de tradução de bukowski em português num dos blogs do manuel a. domingos:

    http://oamorumcodoinferno.blogspot.com/

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