sexta-feira, 24 de setembro de 2010
NÃO CONSEGUIR ACORDAR A INCONSCIÊNCIA - SEGUIR O RIO - JOSÉ FERREIRA - POEMA
NÃO CONSEGUIR ACORDAR A INCONSCIÊNCIA - SEGUIR O RIO
a pouca luz anterior de um fim de tarde
onde rolaram rostos vagos de cidade
trajectos de passos sucessivos ao lado das estradas
nos passeios, nas paragens, sem mistério
cronometrados.
o quiosque – o maço de tabaco, o diário
o café ocasional – as vozes dispersas em argolas
o almoço chinês – asas de pássaro e dificuldades
o banco – véus de números e sorrisos de contabilidade
a reunião fleumática – garças altas e nós de gravatas
o trabalho – folhas A4 e conversas fechadas
o supermercado – iogurtes, chocolate e congelados.
a pouca luz interior de um fim de tarde no hall,
na entrada. a correspondência aguarda.
nada de envelopes quadrados, postais,
letras sem computadores, caligrafias de aparo
ouros raros, há quanto tempo não escreves uma carta?
sem hesitar esqueceu as roupas em qualquer lado
no suporte da banheira, na esfera do porta toalhas
na cadeira mais pequena, nas costas do sofá
onde água, uma gota de água desliza e perde densidade.
sem mais que a parte de baixo, deitou-se gasto
de olhos rasgados e húmidos como Rubens, um dia
em Madrid, no museu do Prado, uma tela a óleo
um quadro, onde as peles claras, os penteados
não lembra bem, não interessa, já não sabe.
deitou-se cedo sem cumprir horários
muito perto daquele outro corpo deitado;
um campo de searas no Alentejo longe
onde a dança solta de aves no céu
onde os ninhos de cegonha, as espigas
agudas e risonhas.
não conseguiu acordar a inconsciência.
de olhos abertos como um mocho, mas sentado,
pensou nos jardins escondidos do Palácio.
a mão como um navio desceu do joelho
ao ângulo do ilíaco, passou o diafragma
até ao oriente oposto e diagonal de um ombro.
repetiu o gesto como quem completa uma oração
as mãos, as costelas flutuantes, passando
ao oposto ombro, diafragma, coração.
a cruzada dos braços e os sons do rádio
na hora das notícias. não interessa. não interessa.
obscura a luz do quarto e as duas almofadas
dunas brancas de algodão, anatómicas em socalco.
os lábios entreabertos, entrada sibilante
de uma ilha sem continentes, um lugar de silêncios;
porque não escreveste?
a alma sem asas, em arco, em queda.
apenas e agora a música cardíaca –
como a pedra grande expandindo os círculos,
a música – uma valsa longa e longínqua
nas margens nocturnas do Danúbio.
de madrugada o astro enviou os raios, miríades,
e as pálpebras já tontas encostaram os remos
e seguiram o rio –
José Ferreira
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Gostei, Sylvia. Vai para os marcadores do blogue do José Ferreira.
ResponderEliminarObrigada
Belo olhar, belo!
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