Subscribe

RSS Feed (xml)

Powered By

Skin Design:
Free Blogger Skins

Powered by Blogger

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

REVISTA INÚTIL N.º 2




















REVISTA INÚTIL N.º 2
UMA VISÃO DOS TEXTOS

"Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil desde que não a admire.
A única desculpa para fazer uma coisa INÚTIL é ser objecto de intensa admiração."

Oscar Wilde


Tem andado por aí, dando a volta Portugal (como costumo dizer à editora Maria Quintans), o segundo número da Revista Inútil, datada de Abril de 2010. Trata-se de um formato muito agradável à vista, com poesia (ou prosa com fins poéticos) e arte visual (fotografia e ilustrações de vários géneros), sendo que a segunda serve para reproduzir cada poema (ou cada conjunto de poemas, melhor dizendo) na sua linguagem própria, o que tem a particularidade de, ainda antes da leitura, sermos tentados a espreitar a imagem, condicionado essa mesma leitura. Sob o signo (falta-me uma palavra melhor) do Tempo, esta publicação, de que tive a honra de participar, tem o mérito de juntar autores de universos e idades diferentes, contribuindo para um todo heterogéneo, mas sem deixar de ser harmonioso e coerente. Encontramos logo nas primeiras páginas o mundo de Cláudia Lucas Chéu, feito de relógios de cuco, de uma nudez interior e surda, de passos lentos nos cenários de delitos de personalidade. Estes poemas conjugam o lado visual (no sentido de imaginarmos os passos do eu poético) com reflexões interiores imagéticas, algumas de inquietação e questionamento ("há qualquer coisa de inquietante no pontuar dos segundos / o ruído mquinal dos ponteiros contra o ar / marcando o ritmo ad infinitum"). Amadeu Baptista, um dos nossos consagrados, aparece imediatamente a seguir, na página 13, com um longo poema que tem uma fórmula que funciona perfeitamente na voz de qualquer leitor. Tem um ritmo distinto, com a repetição de artigos definidos, mesmo com a desigualdade de tamanho entre versos. Começa assim este "Notações para um Calendário Perpétuo": "o que abala o vapor que passa a sulcar as águas? / aquele que vai sonhando com a escuridão, como li em pavese (sognando il buio)? / outra dor mortal, que se fixou entre a décima e a décima-primeira vértebra?". É interessante concluir que, ao fim e ao cabo, com estes versos em que há duas alternativas contrapostas, é o próprio leitor que acaba por fazer o poema, é ele que se inclina ou para uma ou para a outra hipótese. Um poema belíssimo em termos formais e substanciais, um pouco surrealizante (ou mesmo surrealista) ao ir buscar realidades tão díspares, questionando o mundo e o tempo.
Rodrigo Miragaia apresenta-nos um ambiente de poesia visual e ao mesmo tempo substantiva, com alguma base sonora ("podes dobrar o chão do mundo / conseguir partir um vidro em hexágonos"). É algo de muito aberto e por vezes quase alegórico o que nos dá o autor. Alice Macedo Campos oferece-nos um poema, dividido em quatro partes, com o sugestivo título "um país chamado Setembro". Quando o li da primeira vez foi impossível não pensar no poeta brasileiro Manoel de Barros, uma das minhas influências, uma vez que aqui as coisas ganham dimensão, senão forma, humana. Há rosas que pensam que vão morrer, pedras que ouvem pensamentos, há um silêncio e morte enquanto irmãos; e no final há um Criador que reorganiza a ordem natural das coisas e que a muda à sua conveniência, fazendo notar e sobressair as pequenas coisas da vida, erguendo-se a sua dimensão temporal. O músico Tiago Bettencourt é outra das curiosidades da revista. O seu poema tem, como não podia deixar de ser, uma musicalidade natural, com rimas internas muito interessantes, e aliterações que dão força a um poema sobre o eu no seu estado mais puro ("já é dia em morno mundo / já há luz mas que não cura"). Pedro Eiras e Dalila Pinto de Almeida apresentam-nos um tempo que é espaço e que é prazer, com textos fragmentários. Catarina Nunes de Almeida reencontra-se com a temática de Prefloração e A Metamorfose das Plantas dos Pés, os dois livros da autora, sendo estes poemas continuação do conteúdo temático desse material, com poesia ligada à terra, à natureza, a pontos de fuga em relação ao mundo tecnológico dos nossos dias, e uma busca pela paz de espírito.
João Bosco da Silva apresenta um poema linguisticamente forte de vocábulos intitulado Lixeira e que nos remete para o olfacto, para a desilusão e  desespero no confronto com a realidade. Há como que uma dor na consciência demasiado desperta e um sentimento de sobreposição e desgaste. A temática do cheiro, creio, será uma tentativa de redução do mundo em ordem a tornar-se mais facilmente transponível.
A algarvia Alice Turvo traz-nos poemas em prosa de qualidade muito assinalável. Há um ambiente com elevada densidade de metáforas, quase todas elas ligadas ao corpo e abertas ao devaneio da alma, da desilusão, e da involuntariedade dos actos que se fundem numa ideia utópica de felicidade. ("a vertigem do coração demora trinta e três minutos e leva-te sete segundos de atraso"). Bruno Béu conta com três poemas, dos quais destaco o segundo: verão azul, episódio x: a fuga de osíris de sousa. É um poema que faz uso da liberdade de pontuação que é dada à poesia e a explora na perfeição, imprimindo-lhe a ousadia de correr riscos (calculados), intensificando o dizer, e "profundizando" as palavras. (vou pedalar até ao fundo isto é que é velocidade / até pode ser que continuando assim aviste enfim um talvez um / azul qualquer"). Este tipo de poemas, porém, requerem uma leitura prévia antes de declamados, e talvez na declamação se exija uma dramatização específica, o que, a meu ver, só o enriquece. No meio da revista há uma entrevista a Bernardo Sassetti, também ela com o seu "quê" de poético em que se aborda o tema da revista, dizendo o compositor: "O tempo ouve-se e não se vê. O tempo morre e renasce. O tempo está-nos nos ossos". Retomando a poesia em sentido estrito, Jorge Vicente remete o tema do tempo para o começo de tudo: "pergunto-me uma vez mais / se descobrisse o tempo no / ventre calado das mães". Por seu turno, o "Dilúvio" de Bénedicte Houart, um texto poético, aborda o tempo enquanto morte e amor, um com o outro, ou um sem o outro. Victor Oliveira Mateus pega no tema enquanto dilatação, medida de distância, pela reviviscência de um passado que persegue e que caminha até à biologia do presente. É, a meu ver, a infância enquanto primeira cidade do corpo, primeiras sensibilidades dos edifícios que se constroem, imagens que ficam e que no presente e idade adulta ainda (se) interrogam, inquietando as dúvidas. O actor André Gago também nos presenteia com um belo texto. Gostei verdadeiramente da imagem do sol enquanto hímen da madrugada. A poetisa Marta Chaves faz a poesia regressar, na página 65, à sua génese básica. E também, tal como Victor Oliveira Mateus, faz o tempo regressar à infância. Mas aqui trata-se de uma infância imaginada, decorada com todos os sentidos concentrados nos olhos de uma criança, a criança no estado mais puro da indefesa, a mesma que um dia cresce sem perder de vista a imagem do passado. Aqui o tempo aparece como diferido, e esta criança, um dia, em estado de adulta, interpretará este momento com o confronto e choque do conhecimento futuro ou com o desconhecimento e esquecimento semivoluntários que a farão insensível.
O poeta Nuno Júdice tem três poemas muito interessantes, entre os quais destaco "Mudança de Tempo". ("Mas quem lhes irá explicar que o tempo / não é o que parece, e que estas nuvens não passam / de um pausa no verão?"), interroga o autor no citado poema. Esta poesia é claramente de interrogação. Não nos mesmos termos em que Amadeu Baptista o fez, mas numa toada mais retórico-afirmativa, enquanto insinuação da impessoalidade. É, afinal de contas, o mundo tal qual como é, com as suas nuvens, pássaros e tempestades (elementos do poema), segundo os desígnios de um deus que nos prepara o eu a cada esquina, a cada fim de tarde.
Quer Helena Nunes, quer Rui Almeida usam os fragmentos, e a sua junção, para passar as suas mensagens, exprimindo o tempo como primeira luz, e como nostalgia pelas impossibilidades que permite. Em Rui Almeida o tempo é um tempo subjectivo, representado por cada elemento do quotidiano e pelas correspondências e entrecruzamentos dos seus ecos e artes especiais.
Nicolau Santos dá um toque lírico à globalidade de textos ("como nos beijamos com fúria / e apenas um sabor vazio / fica na boca").
A poetisa Maria Quintans, co-editora da revista com Ana Lacerda e João Concha, tem dois poemas muito interessantes e diferentes entre si. O primeiro, a que eu chamaria, se tivesse de lhe compor o título que não tem, de "folha branca", remeteu-me para o universo de Ana Luísa Amaral, com dois vectores essenciais traduzidos em tempo "memorístico" e em tempo actual, que ainda assim remete para o primeiro. Aqui o tempo é uma folha em branco que se vai transformando, impondo as suas esquinas, as suas construções em altura, o seu cansaço como acumulação de matéria, e uma colheita que nem sempre multiplica caminhos e sucesso. O final deste primeiro poema é, para mim, o momento mais arrepiante da globalidade de textos, pela surpresa que surge
como que atrás de uma esquina sem visibilidade, uma vez que as duas primeiras estrofes apontam num sentido, de certa forma, diverso, e já com uma autonomia e segurança relevantes que assegurariam, independentemente do final, a sua qualidade. No segundo poema, a que eu chamaria de "croseta" (pela imagem acima dele) dá-se a desmistificação do tempo pela igualdade (manutenção em estado de igualdade, inalterabilidade) das coisas no seu decurso. E isto tudo com recurso em certos versos ao expediente contrário da negação. A negação que afirma, que mente, que pendura o tempo no armário, esperando a coragem para o seu preenchimento.
Ruy Narval impõe uma matriz mais clássica e com referências épicas, mas sem perder de vista o tempo actual. É como que uma fuga para trás, saudades como envelope fechado, nunca aberto. Júlia de Carvalho Hansen dá-nos uma crónica muito interessante sobre o tema, com o nome Atendimento. Joaquim Cardoso Dias, poeta com quem tenho muita afinidade, traz-nos um pequeno poema chamado "Primeira Leitura do Livro das Imagens" e que diz assim: "dos pés à cabeça / voltar ao corpo / e ao tempo visível e / indesculpável / dos corações imberbes / e fingir / com os cabelos brancos / e os testículos de lapela".
A actriz Ana Zanatti alinha os seus versos pela medição do tempo enquanto busca de verdade, o tempo métrico, organizativo, estudado. Mas o mesmo tempo dentro do qual se perde o controlo, em que o silêncio e o espaço estão limitados. Uma boa surpresa, devo dizer. Duarte Cruz vai pela consciência enquanto factor de mudança do tempo, um tempo de renúncia, preso, de morte, de ignorância.
Em Casimiro de Brito há dois tempos porque há um eu e um tu. O tempo é aqui um tempo feliz, porque de coincidência física. É bela a transformação, no primeiro poema, desse eu e tu em "fome cheia de luz" e "concha milenária". Marina Cedro, na mesma página, adopta a mesma forma, embora com uma matriz mais física, tais as referências ao sangue e à devoração, que Casimiro de Brito.
Tiago Nené, meu parceiro no texto-al, é outro dos poetas algarvios presentes na revista. Destaca-se o poema Polishop, título homónimo do último livro de poemas do autor. O referido poema aborda a exclusão, sendo que aqui a exclusão é consciente e é representada por alguém que se vê de fora e que vai retratando o que se soleniza aos seus olhos; e fá-lo não sem criticar, não sem perguntar o preço, não sem desfocar as fotografias de um tempo impermitido, inacessível a quem já parte atrasado. No final, diz o poeta, "quem me dera poder embriagar-lhes a sombra / desatar-lhes os nós da vida / poder vê-los andar de novo /e ficar aqui para sempre, neste fim de tarde, / compensando a minha completa falta de rosto / com a tripulação dos meus dedos / fingindo sobre a máquina fotográfica." Há como que um fingimento-sobrevivência nesta poesia, aquele que parte do real e cuja forma de o mudar (interna e pessoalmente) é esse desconhecimento, esse processo de superfícies, tal e qual como uma fotografia olhada muitos anos depois, uma fotografia já velha e que esconde segredos que ao Tempo já não será possível revelar. Vasco Gamito apresenta um poema diferente, com o título H2SO4, pegando num tema que me diz pessoalmente muito: o da criação a partir do erro ("um erro de tradução, passar pelo buraco de / uma agulha sem ter encontrado na descida / coelhos brancos dependentes de relógios de / bolso nem ampolas de elixires"). Marcos Caiado tem três poemas de carga confessional, de que destaco o poema "Tarde" que acaba "sui generismente" com um "morri enquanto morria". Quanto a texto, José Luís Peixoto faz as honras da casa e termina-a com dois textos de sua autoria. Gosto particularmente da provocação inicial do segundo texto: "Ainda seguras a revista? Ainda lês? Quem está à tua volta? como são as tuas mãos?"

Há uns anos, em Itália, para onde vou muito, um desconhecido disse-me: "as pessoas sem assunto falam sobre o tempo". Esta revista Inútil, segundo número, prova o contrário, dando muitas variações diferentes ao tema. Que venha o terceiro número e muitos lhe sucedam.

Artigo escrito por Sylvia Beirute

7 comentários:

  1. obrigada, Sylvia, excelente trabalho o teu.

    um beijo

    maria

    ResponderEliminar
  2. Obrigado, Sylvia. Só tenho pena de não teres tido oportunidade de ouvir o Pedro Garcia ler os teus poemas no Centro Cultural de Lagos, aquando da apresentação deste #2 da INÚTIL, no passado dia 22 de Maio de 2010. Bem-hajas!

    ResponderEliminar
  3. está fantástico, Sylvia. Obrigado pela leitura!

    Abraços
    Jorge

    ResponderEliminar
  4. que grande trabalho aqui tens! parabéns! um beijinho. e obrigada...

    ResponderEliminar
  5. Sobre esta revista e o poema do Amadeu Baptista, dê um pulinho aqui:

    http://esquerda-da-virgula.blogspot.com/2010/05/inutil-revista-exterior-crise-e-um.html

    Isto não é spam.

    ResponderEliminar