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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

JOSÉ LUÍS PEIXOTO - TELEVISÃO A PRETO E BRANCO

















TELEVISÃO A PRETO E BRANCO

Tínhamos uma televisão a preto e branco. Sobre o ecrã estava uma tela azul de plástico. Havia dois fios que passavam sobre a televisão e que, atrás, tinham dois pesos de chumbo. A tela transformava as imagens a preto e branco, os desenhos animados, as telenovelas, os telejornais, em imagens que se moviam em diversos tons de azul. Em domingos, o sol entrava pelas janelas, torrentes oblíquas de luz sobre os mosaicos do chão da cozinha. Sei hoje que a minha mãe era nova. A minha avó vinha visitar-nos. A minha avó estava viva. Era a minha avó. Não sei que idade tinha. Começamos a saber a idade das avós apenas quando nos tornamos adultos. Quando somos crianças, sabemos que as avós são velhas. As mães são velhas porque são mães. As avós são as mães das mães. Sei hoje que a minha avó era nova. Não conheci a minha avó mais nova do que naqueles dias. Nesses domingos, eu podia estar a fazer qualquer coisa, podia estar apenas a passar pela cozinha. A minha avó estava sentada numa cadeira. A minha mãe, sob a janela, atravessada pela luz, estava inclinada sobre o lava-loiças e, com detergente, lavava a tela azul da televisão.

Às vezes, no Natal, os meus pais contavam a história de quando tinham aparecido as primeiras telefonias. As pessoas, todas em silêncio, sentadas na casa do povo à noite. Os rapazes a olharem para as raparigas. Essas eram histórias que eu conseguia imaginar, mas eu conseguia imaginar mesmo as histórias que o meu padrinho me contava do tempo da primeira república. Nesses dias, eu e os meus amigos víamos os mesmos desenhos animados e víamos as mesmas telenovelas. Falávamos disso a caminho da escola. Falávamos disso no recreio. Quando tínhamos cães acabados de nascer, davámos-lhes nomes de personagens das telenovelas. Entre os cães que tive, havia o Neco e o Quintanilha. Havia também a nossa cadela mais querida, aquela que vi nascer, que vi morrer e que aprendi a respeitar, que recordo sempre com todo amor que é possível entre uma pessoa e um animal, a Grisla, que tinha o nome da mãe de um ursinho dos desenhos animados, o Misha, mascote dos jogos olímpicos de Moscovo em 1980. No recreio, chamávamos nomes de personagens das telenovelas uns aos outros. Se havia um par de namorados, chamávamos-lhes os nomes das personagens que eram o casal mais apaixonado da telenovela. Alguns desses nomes duram até hoje. Alguns desses nomes, já passaram para os filhos. O Nacibe, o Mundinho ou a Gerusa fizeram com que, mais tarde, existissem também o Nacibe pequeno, a filha do Mundinho ou Gerusa pequena. As minhas irmãs compravam revistas brasileiras que tinham entrevistas dos actores das telenovelas. Eu lia essas revistas. Lia as fotonovelas: “Você já não me ama”, “Amo sim”… Continuava a folhear páginas e dizia: “Olha a Malvina!” Eram personagens do “Casarão”, ou da “Escrava Isaura” ou do “Dancing Days”. No início de cada ano lectivo, as minhas irmãs reuniam essas revistas, tesouras e rolos de fita-cola sobre a mesa da cozinha. Depois, começavam a recortar as fotografias dos actores das telenovelas. Forravam os livros com essas fotografias e, depois, forravam essas fotografias com folhas de plástico. Eu haveria de estudar mais tarde por alguns desses livros, livros de geografia, gramáticas, livros com exercícios de matemática resolvidos a lápis. No seu interior tinham frases escritas por caligrafias de raparigas sobre o amor, frases que carregavam a esperança que as raparigas daquelas idades tinham sobre o amor. Raparigas de treze anos, que andavam no oitavo ano. Raparigas que imaginavam palavras como “amor”, “paixão”, “beijo”, “carícia”. Raparigas de treze anos que dançavam slows em matinés e em festas de anos. À hora da telenovela, oito e meia da noite, toda a gente sabia que não havia ninguém na rua. As mulheres que não tinham televisão, as mais velhas, as mais pobres, iam para casa de vizinhos. Sentavam-se muito direitas nos sofás. Os homens ficavam nos cafés. Em nossa casa, as minhas irmãs zangavam-se se alguém falava durante a telenovela. Pediam aos meus pais para se calarem. Ao fazê-lo, falavam. Os meus pais diziam que elas é que estavam a falar. De uma frase, nascia uma discussão que só parava quando as minhas irmãs ou os meus pais, sem estarem convencidos, deixavam de responder.

Eu e os meus amigos sabíamos que existiam televisões a cores, mas nunca tínhamos visto nenhuma. Quando alguns dos rapazes que andavam comigo na escola começaram a ter televisões a cores, não foi algo que nos surpreendesse. Nós sabíamos que existiam televisões a cores. No entanto, foi espantoso ver a abelha Maia ou o Dartacão pela primeira vez a cores. As cores. Às vezes, alguns dos rapazes que tinham televisões a cores deixavam-nos ver os desenhos animados na casa deles. As mães entravam e punham-se à frente da televisão. Tentavam oferecer-nos pão com tulicreme. Nós recusávamos de cabeça baixa, dizíamos “Não, obrigado”. Outras vezes, viravam-se para os filhos e, como se nós não estivéssemos ali, diziam: “Já te disse para não trazeres esta cachopada toda cá para casa”. Às vezes, durante as brincadeiras, os rapazes que tinham televisões a cores diziam: “Se não me passares a bola para marcar golo, se não me emprestares o teu carrinho vermelho, se correres mais depressa do que eu, não te deixo ir a minha casa ver os desenhos animados.” Às vezes, os rapazes que tinham televisões a cores escolhiam dois ou três entre o grupo de rapazes que estava a brincar na rua e, na hora dos desenhos animados, iam com eles para casa ver televisão. Nós ficávamos a vê-los enquanto desciam a rua e não conseguíamos fingir que não nos importava.

No dia em que o meu pai trouxe a nossa televisão a cores, já há muito tempo que eu dizia aos meus amigos que íamos ter uma televisão a cores. Poucos se impressionaram. Eu, no entanto, estava impressionado. Fui com o meu pai à loja. Entre televisões, o meu pai disse-me: “É uma destas.” Depois, a carregá-la, tão pesada. Depois, a chegarmos a casa. A minha mãe a ver tudo. Eu, um pouco mais perto, a participar um pouco mais. O meu pai a tirar a televisão de dentro da caixa de cartão, a separar as protecções de esferovite. A televisão a preto e branco a ser tirada do seu lugar como algo que envelheceu. A minha mãe a limpar o pó do móvel e a televisão nova, brilhante. O meu pai começou a sintonizar os dois canais que existiam e a primeira imagem que apareceu foi um jogo entre o Benfica e o Estoril Praia. Eu conhecia os jogadores quase todos, conhecia as cores dos seus equipamentos. Tinha uma caderneta de cromos com as suas fotografias e os seus números. Eu e os rapazes da minha idade, trazíamos sempre connosco os cromos que tínhamos repetidos. Trazíamos sempre connosco uma lista, escrita à mão, com os números dos cromos que nos faltavam. O primeiro a acabar a colecção ganhava uma bicicleta que estava na montra do café do terreiro. Todos sabíamos quando alguém tinha acabado a colecção, todos sabíamos quem tinha ganho a bicicleta. Eu nunca acabei a colecção primeiro. Uma vez, ganhei uma bola. No primeiro dia em que tivemos televisão a cores, fiquei a ver o jogo de futebol. Teria ficado a ver outra coisa se fosse outra coisa que estivesse a dar na televisão. Depois, cresci.

Hoje, o meu filho e as minhas sobrinhas têm televisão por cabo. Têm canais que só passam desenhos animados. Há muitas telenovelas diferentes. Às vezes, no Natal, conto-lhes a história de como, quando eu era da idade deles, tinha uma televisão a preto e branco com uma tela azul de plástico. Nem o meu filho, nem as minhas sobrinhas sabem a minha idade ao certo. Um dia, os meus filhos saberão que, hoje, ainda sou novo. Nesse dia, o meu filho e as minhas sobrinhas contarão as histórias de hoje a crianças que não conhecerei. Talvez nesse dia eu esteja, na cozinha, com as minhas irmãs, os meus pais e a minha avó a ver a nossa televisão a preto e branco.

José Luís Peixoto
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