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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

PROSA - UMA CASA EM BEIRUTE (1)



















UMA CASA EM BEIRUTE (1)

            sair de casa sem saber como se sente é uma coisa perigosa. todas as coisas se contrapõem à base diária do sentimento. não conhecer tal fundamento é permitir a auto-estrada das emoções avulsas; ou pior, em caso de inacessibilidade da mesma ou pagamento de portagem não acessível ao bolso, a imposição de caminhos muito secundários, que vão dar às partes mais estranhas e surpreendentes do corpo. hoje saí de casa, coisa que não fazia há alguns dias. fi-lo como se o meu olho trocasse o ver pelo desempenhar. desempenhar no sentido de ser uma lagartixa às nove da manhã olhando as margens da rua, ou escutar através do olho clínico as margens da voz nas pessoas que usam as palavras na boca como cigarros. há minutos alguém o fazia. a palavra era «palavra». ele falava de palavras como se alguma vez lhes tivesse visto as tripas ou como se aquelas tivessem uma espécie de bicho da fruta. sair de casa tem destas coisas. mas não sair de casa também tem coisas. coisas como experimentar o infinito interior da paralisação dos abdómens mentais, das vírgulas emocionais que sempre devem existir para que o pensamento seja, como deve ser, um sujeito autónomo, com pernas, braços, equilíbrios frágeis, e outros elementos. porque se o pensamento não for um homem, estagna; não se reveste da dignidade da luta e possível conquista. o pensamento não pode ser teu. «o pensamento poderá ser teu», é este o slogan que deve ser usado.
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            eu agora não estou na rua, mas é como se estivesse, pois estive há pouco. a rua também prende palavras. palavras que embora não livres, pois se confinam ao universo da rua, são abertas. é uma razão para se sair de casa, a abertura da linguagem. ainda que tão aberta que o querer-dizer se fique pelos indícios. e o meu corpo começou a sentir palavras. até que uma senhora disse «os meus ossos são muito transitivos», e eu não percebi que tipo de linguagem era aquela: não sabia se ainda pertencia à linguagem aberta da rua, se à linguagem fechada do estar em casa e que erroneamente tinha sido colocada ali. o contexto não entendi, muito porque uma criança próxima de mim abusava da palavra «mãe», o que me perturbou o sentido momentâneo, sentido, talvez o sexto ou o sétimo, que nos faz perceber a realidade desde que haja um esforço sério naquele momento. se o momento passa e a apreensão não se faz, a sua reprodução tardia torna-se difícil, para não dizer impossível.
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            sair de casa sem saber o que se sente faz com que a existência seja uma quimera, completamente nua, para além de nua; como se o corpo nu ainda procurasse a sua nudez. levemente toquei no meu pescoço, e depois nos ombros como se este último gesto me pudesse fazer perceber a «questão transitiva» dos ossos. creio que não percebi, mas senti, sem  porém saber o que sentia. 
            e entrar em casa sem saber o que se sente é uma coisa perigosa. o relógio pariu uma hora nova, dentro da qual eu fui dormir. beirute estava finalmente em silêncio.

Sylvia Beirute
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