Uma seleção pessoal:
NA MORTE DA AVÓ
não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se
a penosa execução circular e nocturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquilhagem
no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimónia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de
Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
- é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida -
depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante
o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia
como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia
a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota
Miguel-Manso
*
COMO SE FAZ O POEMA
Para falarmos do meio de obter o poema,
a retórica não serve. Trata-se de uma coisa simples, que não
precisa de requintes nem de fórmulas. Apanha-se
uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou nos mercados. É uma flor de sílabas, em que as
pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. Põe-se
no jarro da estrofe, e deixa-se estar. Para que não morra,
basta um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da manhã enche o quarto de azul. Então,
a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o poema. Para que ele nasça, a flor precisa
de encontrar cores mais naturais do que essas
que a natureza lhe deu. Podem ser as cores do teu
rosto – a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da vida se confundem, com o brilho da vida. Depois,
deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para as folhas, como a seiva que corre pelos
veios invisíveis da alma. Posso, então, colher a flor,
e o que tenho na mão é este poema que
me deste.
Nuno Júdice
*
UM DIZER AINDA PURO
imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.
dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.
diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.
Vasco Gato
*
PÁSCOA BAIXA
Durante a manhã inteira a barba
ainda cresceu. O vórtice que me picava
ao fim de um dia de trabalho
já o posso adivinhar
neste círculo de flores.
O seu torso é imóvel. Nada
diviso a mover-se (um relâmpago das pálpebras?
o pensamento de um dedo?)
velo a hesitação da barba qual
néscio agarrando tempo.
Durante a manhã de março a
barba ainda cresceu
qualquer coisa dentro dele ainda
não queria morrer.
João Luís Barreto Guimarães
*
OS NOTICIÁRIOS DA MANHÃ
Os noticiários da manhã abriram com essa imagem
fabulosa: dois poetas construíam um edifício.
Não era um edifício abstracto. Não
era o utópico edifício do coração das obras.
Era um edifício verdadeiro: alicerces,
paredes, telhado; pedra, tijolos,
cimento. Em vez do exercício habitual
de poetas procurando destruir os edifícios
todos da cidade, um a um, disparando canhões
de pólen, estes dois poetas erguiam
um edifício verdadeiro, concreto,
tangível. E isto é de uma humanidade
comovente. E isto chego a pensar
que quase merecia um poema.
José Carlos Barros
*
ÁMEN
Em círculo,
Estão os círios e as candeias,
Nas aldeias de novembro elas também estão
Em círculo,
As mães que fecham a escuridão.
Às vezes a neve cai sobre as palavras que
Os anjos aprenderam no bosque nocturno e
Então abre-se como um livro a casa de luzes
Vermelhas,
Acendendo, num porto antigo, os olhos
Profundos do abismo e da desolação.
Rezamos em silêncio e os sinos dobram e
Na curva da colina
Já se avista o cortejo da música.
Não podemos entrar.
Não há lugar aqui para as rosas do pai,
Inúteis, magoadas pelo furor das nossas mãos.
A mortalha arrefece.
Arrefecem longamente as estrelas que um
Dia vi sobre os jardins. Sem regresso
Estão os cisnes parados, quando a neve cai.
José Agostinho Baptista
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