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domingo, 24 de abril de 2011

FERNANDO ESTEVES PINTO - BRUTAL (EXCERTOS)

O silêncio é o espelho do Senhor Ibsen. Superfície manuscrita de culpas e remorsos. Sentiu raiva do que escrevera. Ainda pensou criar uma imagem na qual o Jovem Ibsen estaria prisioneiro dentro do espelho. Silêncio dentro do silêncio. Como pudera sair desse ser e tornar-se no que é agora? Como pudera formar-se a partir de uma série contínua de falhas de relacionamento? Continuaria a fazer-lhe as mesmas perguntas, a tecer as habituais acusações, violentas, sarcásticas. Por muito sofrimento que isso lhe causasse, teria de vitimar a sua própria infância. Por mais íntimo e desconfortável que se revelasse esse duelo de silêncios, teria de escalpelizar minuciosamente os seus actos, todas as brutalidades cometidas no decorrer da sua vida. Embora com um triste alívio da consciência, encontraria no Jovem Ibsen um paciente portador das suas frustrações e fúrias momentâneas. Quebraria inconsolavelmente o espelho do silêncio de ambos. Lutariam dentro um do outro como dois animais que se corroessem numa lenta agonia. Nesse grande duelo interior que funcionava como uma máquina de avaliação em que um deles seria dissecado em função do comportamento do outro.


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O Senhor Ibsen sentia-se disponível para empreender uma viagem que a todos os níveis constituía um ritual de procura e reconhecimento de si próprio tendo por base a sua infância. Foram as últimas palavras da Rita que o lançaram na infernal viagem. Sentira a acusação dela como um estímulo que ele deveria interiorizar de modo a aproximar-se da criança que ainda o atormentava. A viagem seria tortuosa e implicaria da sua parte não só honestidade, mas uma inequívoca obediência da memória que desbloqueasse o acesso a situações dolorosas, onde o amor e a crueldade formavam nele uma espécie de barreira dupla no enquadramento da sua personalidade. Uma galeria de imagens constituída essencialmente por comportamentos accionados por instintos destrutivos e delinquentes (discussões em família; sentimentos desenvolvidos por reacções afectivas insustentáveis; provocações trágicas que revelavam situações de insensibilidade e impotência) minava-lhe o espaço de infância e fazia-o desprezar-se por pertencer a uma família disfuncional e endémica. Todas as cenas protagonizadas pelos pais e presenciadas por ele reduziram-lhe o amor e o respeito pelos outros, ao ponto de não se reconhecer na criança que estava a ser formada. A criança fundiu-se na imagem do adulto e este deixou-se dominar por ela. Quando ocorre algum erro de comportamento no Senhor Ibsen, a infância torna-se o quadro da autoavaliação onde é suposto a criança sentenciar-lhe uma acusação ou admitir-lhe uma fraqueza por influência de relacionamento. Havia momentos em que tinha uma absoluta consciência de que agia com a Rita por meio de imitações de cenas representadas pelos pais durante a sua infância. Palavras e actos, frases inteiras, provocações repetidas com uma furiosa precisão muitos anos depois, local da discussão, objectos utilizados no confronto, era tudo caracterizado pela sua memória, tudo preservado e defendido por uma consciência tormentosa que se servia desses arquivos de violência da mesma forma que alguém tentava libertar-se do caos e do medo. O Senhor Ibsen sentia uma voz que se impunha num registo dramático e que parecia enaltecê-lo nas suas decisões, por mais insensível que se apresentasse o seu interior. Como uma obsessão, era acometido pela necessidade de provocar uma cena que o relançasse no passado, um imenso e estranho teatro de vozes cuja representação distorcia nele a capacidade de reconhecimento e controlo da realidade envolvente. Nas suas projecções profundas de raiva e desespero tudo fazia parte do passado, logo, tudo era aceite num plano desculpável e amenizado por ele próprio. Porque raramente havia uma culpa que se poderia atribuir-lhe sem no entanto se confrontar pela evidência da sua infância. O poder que o Senhor Ibsen exercia sobre a Rita era uma tentativa desesperada de encobrir as raízes da sua fraqueza. E a sua fraqueza, quando posta em actividade pela mais ínfima contrariedade, depressa transpunha a barreira da sua racionalidade e transformava-se na mais cruel das ameaças. Tudo no Senhor Ibsen era eruptivo e atingia proporções que ameaçava a sua forma de estar com alguém. Havia algo de infantil no seu espírito, ou alguma coisa de excesso que implicava irredutivelmente com a sua capacidade de relacionamento.

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O medo era uma herança incómoda na vida do Senhor Ibsen. Não só o medo que os outros podiam sentir por causa dele, mas o medo que ele sentia na análise vulnerável do seu comportamento íntimo e emocional. Tinha um profundo horror às suas próprias reacções, embora fosse capaz de fazer a previsão da gravidade do seu estado de espírito. Intuía quando um infeliz diálogo se desviava para uma zona de violência, sem no entanto conseguir reprimir a sua ira contra alguém. Nunca o Senhor Ibsen poderia controlar o medo que sentia porque o medo era o único sentimento que o ligava à infância e aos pais. Em momentos infectados de maldade, quando a vida dos dois parecia rodopiar num ralo infernal, o Senhor Ibsen considerava a Rita como modelo de caracterização da própria mãe, e dessa forma sentia-se incomodado por tantos estragos causados pela sua consciência devoradora. O que ele deixava escapar do seu comportamento agressivo podia ser entendido por uma sequência de cópias ou representações de atitudes e situações desencadeadas durante a infância, sentindo a presença da Rita como algo precariamente humano e exposta ao seu instinto fulminante e esmagador. O Senhor Ibsen incomodava-se cada vez mais com o seu medo indecente desempenhado pelos seus actos recheados de insanidade moral. Sempre que ele e a Rita se enfrentavam, a mãe e o pai surgiam num ponto transtornado do palco na sua memória como duas silhuetas que representassem uma cena a ameaçar a vida numa complicada ciência de inutilidades conjugais. Havia em tudo o que ele observava diante daquele palco de representação familiar, em todo aquele espaço íntimo e dramático, uma monstruosidade real que o obrigava a meditar sobre a cenografia do medo. O medo que ele transportara da infância e que agora o dominava por completo, corroendo numa alucinação triste e magoada toda a trama dos primeiros tempos de confiança e amor. Tudo a ficar sem história na sua vida, o medo a transformar-se na imagem da mãe que devora a sua própria cria. E o tempo abatia-se sobre ele e sobre todos os que viviam com ele como um caminho cheio de pó. Como um pano que desce sobre um palco onde o silêncio tem a orgulhosa tarefa de ocultar quem fomos e em que espécie de pessoas nos tornámos.
Em Brutal
Ulisseia, 2011
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