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domingo, 1 de agosto de 2010

Ricardo Domeneck por Érico Nogueira


























Conheci Ricardo Domeneck em 1998. Ambos éramos calouros da Faculdade de Filosofia da USP, e quem falou dele pra mim, e de mim pra ele, foi o nosso querido amigo comum, o matemático Bruno Learth, também calouro de filosofia, àquela altura. Foi algo como "ele também escreve poesia" a nossa carta de apresentação. E ficamos amigos.
Acompanhei muito de perto a confecção do seu volume de estréia, Carta aos anfíbios (2005), cuja dedicatória me envaidace ainda mais, se é que isso é possível. Acompanhei as suas coitas d'amor, angústias religiosas, o seu entusiasmo por Unamuno e por Kieslóvski. E já então Ricardo me parecia a própria encarnação do último conselho de Pound aos jovens poetas: "curiosity".
Mantivemos uma intensa correspondência, por alguns anos -- carta de papel mesmo, leitor, essa coisa hoje tão demodê --, na qual discutíamos os poemas e a poética um do outro. Foi uma lição de civilidade, de respeito à diferença. Foi uma imersão no conversable world de David Hume, ao som de Goethe no trompete, tocando Weltliteratur, aquela famosa.
Seguiram-se àquele os volumes a cadela sem Logos (2007) e Sons: Arranjo: Garganta (2009), ambos pela super-hype Cosaic&Naify. Ricardo é pop, sem dúvida; o que incomoda a pose acadêmica da nossa estúpida crítica oficial.
Bem, tudo isso vocês já sabiam, tá aí na rede pra quem quiser ler, e é bobagem repetir. Repito-o, porém, pra falar da mais recente poesia de Ricardo, a qual, sem renunciar às suas obsessões, e aproveitando a técnica precedente, dá um salto imprevisto, toca uma nova toada. Leiamos algo em primeira mão:

Eu

Concentro-me demais
no chão. Minha carteira
de identidade de bolso,
o mais próximo da mão
com que escrevo,
meu registro
geral que nada
mais é que instância
de discurso. O amor, matéria
de hidráulica.
Incha-se
a memória,
se estuma o inverno
como se fosse pupa.
No inverno
quando e onde
é você
o que o
vapor circunda.
Mas meu hipotálamo,
ou o que quer que
em mim balbucia
o que pensa,
é inútil entre as 12
e as 18 horas.
Notívago e diuturno,
sinto-me como a ojeriza
que a atmosfera
dedica ao vácuo
ou o dicionário
ao que está à ponta
da língua,
enquanto cinco dedos
à esquerda
contabilizam à direita
minha herança.
Minha língua entre dentes
não se quer pantera
entre grades. Digo "aqui"
e ponho os pés
no chão; "eu",
e a cabeça entre as mãos;
"hoje", enchendo até doer
de ar
os pulmões. Certeza, não
de meio-dia ou meia-noite,
mas endereço de avião
em voo,
latitude e longitude
como se o meridiano
fosse uma bolha,
de pus ou de sabão.
Prefiro descarrilhar a saber,
já na estação, a caixa postal
do destino, este latifúndio.
Se a dor não
é o dente, restam-me
as respostas
a perguntas há muito
esquecidas, e apenas
a vontade de seguir
as pegadas em trilha
oposta,
como se alguém acoplasse
aos calcanhares os dedos.
Maciez de pedra
perdida em meio
ao algodão, existo
com rochas, digerindo
com antas
e a adorar com anjos,
e faço do meu nome
o mundo, meio
do ente em ato
da matéria, isto
ou aquilo.


O poema é uma declaração de poética. É o poeta aceitando o particular, quebrando com essa coisa de pessoa versus persona, assumindo a responsabilidade pelo que diz. É um novo Catulo, ou outro Calímaco, poetas sempre 'pessoais', que o ouvido atento escuta claramente em "a vontade de seguir/ as pegadas em trilha/ oposta". E a imagem da pedra no meio do algodão, dos anjos e das antas, variando os registros, do sublime ao grotesco, é quase uma lição de poética alexandrina. Já que falamos de Catulo, olhem só --


Poema

Enfim aurora-me na cachola,
doce Jonas de whales, baleias,
por que os deuses desaprovam
o incesto, esse advertisement
ou entertainment em família,
tal reciclagem ad aeternitatem
ou sexo homogêneo à margem
(e sua homenagem à soi-même)
como o cúmulo da economia.
Leis de veto a fellatio in toilets
e virilha em público, ilegíveis,
como Coca-Cola, cocaína & Co.
ou outros substantivos ilegais
para nossa literatura ou lírica.
Teu Ricardo sabe que o peixe
morre pela fome, boca em pênis
de moçoilos é o anzol de sempre
e eis que pé no rabo eu vos nego.
Pedicabo ego vos et irrumabo.
Seguirei sendo nota de pontapé
no apêndice de vossos cérebros
ou até que me canse, escravo
paciente e devoto, das horas-
-extras de chicote e chacota
sobre vossas gretas garbosas.


-- poema esse em que a vertigem de extratos e estratos lingüísticos vem orquestrada por aquele delicioso tom fanfarrão, de enfant terrible, que só Catulo sabe ensinar.
A poesia, meus caros, é sempre também um inconformismo. É uma espécie de alergia ao pó -- viva, articulada, urgente. Qualidades gritantes de Ricardo Domeneck. 

(poemas de Ricardo Domeneck)


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