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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

ANTÓNIO RAMOS ROSA: POEMAS, POESIA, ANÁLISE DA OBRA

























sb: série poetas

ANTÓNIO RAMOS ROSA

A poesia de António Ramos Rosa (Faro, 17 de Outubro de 1924) é exercida dentro das condicionantes que o poeta conscientemente dispõe no seu poema. Pode ser uma palavra, um vocábulo como estaca de uma espécie de tenda transparente, pode ser uma frase que lhe fixa o tema no primeiro verso, ou simplesmente uma combinação de climas, dando ao corpo poético uma uniformidade focal que se alimenta de si mesma. Ramos Rosa tem uma já longa história na poesia portuguesa (e do mundo), pelo que a sua obra foi (felizmente) mudando ao longo do tempo, como que se instalando em instintos diversos, em diferentes lembranças e convenções sociais. Este último aspecto é importante: Ramos Rosa e a sua poesia foram imediatamente transversais ao tempo e a todas as mutações (evoluções ou regressões) nele sofridas. Há, pois, um núcleo de aspectos que se mantiveram mais ou menos presentes em toda a sua obra e que merecem reflexão. É assim quanto à abordagem (recorrente) do vazio e do silêncio. O discurso ramos-rosiano é, neste ponto, dotado de uma linguagem simples, localizado em paisagens em que o tempo abranda e pára, como se o hoje pudesse durar uma eternidade; como se o poema, ele mesmo, olhasse incessantemente para uma das suas portas, sabendo que nada nem ninguém poderá ultrapassá-la. (Escuto na palavra a festa do silêncio. / Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se. / As coisas vacilam tão próximas de si mesmas. / Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas. / É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma. - do poema A Festa do Silêncio). É neste sentido uma poesia que se fecha nos problemas insolúveis que apresenta, na sobrecarga moral do «eu poético», no espírito das suas considerações lúcidas.
No poeta há um confronto muito vivo entre este silêncio e a Palavra (que poderá aparecer em diversas formulações: sílaba, verso, frase, etc), pese embora estas duas realidades se confundam e apareçam, por esse confronto, algumas vezes misturadas. E é assim porque esta palavra é uma palavra silenciada, é palavra enquanto sujeito e enquanto actor de um papel que deveria ser conferido ao homem por detrás do poeta e que, enquanto recurso estilístico, se substitui a ele, com toda a pujança e efeitos poéticos que daí advêm.
Outra das contraposições latentes é a felicidade e o seu contrário (cabendo também aqui várias formulações). A felicidade, porque é para Ramos Rosa "um ofício", apresenta-se ora como um sonho, ora como um dever. Há nesta poesia como que um espelho falso de um futuro próximo cuja moldura é a consciência, cambiando o seu interior à medida que o poema escorre sobre si mesmo. E escorre sobre si mesmo porque se auto-sobrepõe, valendo-se das suas pausas, dos seus intervalos, das suas existências isoladas, para que as palavras, enquanto produto final, se "elegantizem" nos seus significados e adaptações profundas, e homogeneizem o sono, leve ou pesado, activo ou passivo, que o poema traduz. 
O amor, enquanto temática, é tratado como uma dúvida, reforçado que é o papel do tempo e a sua urgência. Há uma espécie de ansiedade e fraqueza que sobe aos contornos mais longínquos do poema. Ainda assim, e ao contrário de muitos poetas que, no seu tempo, fizeram carreira com uma poesia exlusivamente de emoções, Ramos Rosa faz uso de um «cérebro poético», controlador e filtro dessas emoções, expressando os porquês na frieza de um discurso por vezes cortante, dando ao poema o equilíbrio necessário que o faz autêntico.
A sua obra poética é extensa, tendo-se estreado com o livro «O Grito Claro», primeira obra da colecção de poesia «A Palavra» dirigida pelo poeta algarvio e seu amigo de longa data Casimiro de Brito. Nos últimos anos a escrita do autor tornou-se mais centrada na linguagem, facto de que é paradigma o livro "Génese" (Roma Editora). António Ramos Rosa, poeta maior, com a dimensão global que a sua obra atingiu, tem favorecido e contribuído, no panorama nacional, para a afirmação e visibilidade da poesia do Algarve.


Poemas seleccionados:


ESTAR SÓ É ESTAR NO ÍNTIMO DO MUNDO
.
Por vezes   cada objecto   se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa
em "Poemas Inéditos" 
.
*
.
A FESTA DO SILÊNCIO

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

António Ramos Rosa, 

em "Volante Verde"
.
*
.
PARA UM AMIGO TENHO SEMPRE
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, 
em "Viagem Através de uma Nebulosa"

.
*

NÃO POSSO ADIAR O AMOR
.
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa, 
em "Viagem Através de uma Nebulosa"
.
*
.
A PALAVRA
.
Eleva-se entre a espuma, verde e cristalina
e a alegria aviva-se em redonda ressonância.
O seu olhar é um sonho porque é um sopro indivisível
que reconhece e inventa a pluralidade delicada.
Ao longe e ao perto o horizonte treme entre os seus cílios.

Ela encanta-se. Adere, coincide com o ser mesmo
da coisa nomeada. O rosto da terra se renova.
Ela aflui em círculos desagregando, construindo.
Um ouvido desperta no ouvido, uma língua na língua.
Sobre si enrola o anel nupcial do universo.

O gérmen amadurece no seu corpo nascente.
Nas palavras que diz pulsa o desejo do mundo.
Move-se aqui e agora entre contornos vivos.
Ignora, esquece, sabe, vive ao nível do universo.
Na sua simplicidade terrestre há um ardor soberano.

António Ramos Rosa

em "Volante Verde"
.
*

Não podemos ter a certeza da nomeação
Entre o acto ou a coisa e a palavra há uma cesura intransponível
Vivemos paralelamente entre dois mundos como estranhos
e só a invenção pode constituir a fábula
de uma unidade que será sempre incerta ou futura ou improvável
Ou talvez possamos fazer um pacto com o inexprimível
e aceitar o insondável como um solo absoluto
e embalar-nos no silêncio ou no berço da nossa morte
Se uma adolescente expõe o seio diante de um espelho
e se deslumbra apaixonadamente e levemente beija a sua imagem
nenhuma palavra poderá dizer o frémito desse instante absoluto
mas é esse o desejo da palavra que procura um lábio
para sentir que ele é o mundo que desponta e o estremecimento do contacto
consigo própria no apaixonado círculo do seu movimento voluptuoso
Ela navega na solidão de imagem em imagem
para encontrar o outro para beijar nele a sua própria boca
e no seu sexo fecundar a ave subterrânea
das suas anelantes entranhas fustigadas pelo tufão do desejo

António Ramos Rosa
em "Génese (seguido de Constelações)
"

*

Quando uma mulher se despe numa clareira rodeada de arbustos
e sobre uma toalha se estende ao sol o seu desejo é ambíguo
porque não quer ser vista e ao mesmo tempo a sua pele estremece
sob um olhar ausente ou de alguém escondido entre a folhagem
Também a palavra se expõe e oculta no seu fulgor de lâmpada
alimentada pelo fogo obscuro que aspira à nudez solar
Ela inclina-se sobre a água para ver a sua imagem
com o olhar não dela mas de um outro que a move
para ser a presença pura no olhar de ninguém
e poderá ser um dia o de algum leitor que se deslumbra com a sua abstracta nudez
Sem esta duplicidade e sem este puro recato através do silêncio
ela não possuiria o frémito ideal da sua exposição
e seria opaca ou demasiado transparente sem os meandros cintilantes
que a tornam fugidia como um fio de mercúrio
e a sua nudez teria a consistência inerte
de uma pedra sem fogo e sem sal sem o focinho do desejo
Por isso o poema é uma mulher que se enrola na sua nudez
até ser tão redonda como redondo é o ser
com a sua língua bífida entre os lábios do seu sexo

António Ramos Rosa
em "Génese (seguido de Constelações)
"

*

O que não é ainda o que está para ser o que já está a ser
e que não sendo excede sempre em íntima dissonância
que perpetua o mundo para além de nós
e em nós abre uma fenda mas também um espaço neutro
em que a palavra poderá encontrar a rosa do possível
sobre o impossível solo que a nega e que a suscita
O que o ser mais deseja é a integridade de um sentido
que envolva o não sentido que o transponha numa lenta coluna
de existência reunindo a sede e a móvel nascente
que não existe senão no movimento dos passos sobre o deserto
para que a página se ilumine e a boca respire o azul do dia
Mas o poema é sobretudo o movimento do sono adolescente
em que o mundo não é mais que maresia cintilante
e o ritmo das esferas o rolar de uma bola de esterco que um escaravelho empurra

António Ramos Rosa
em "Génese (seguido de Constelações)"



*

Há palavras que esperam que o branco as desnude
para se tornarem transparentes e vazias
A delicadeza da lâmpada é uma oferenda do olvido
a folha flexível é uma luva vegetal para a mão que oscila

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos da neve
Aí aparece a graciosa metade
em que cintila o pólen da límpida abolição

Escrevo para ser contemporâneo das nuvens
para pertencer à pobre e nua pátria inerte
coberta pelo violento alfabeto dos cláxons
Escrevo para que se levantem os pássaros de areia
e ao pulverizarem-se espalhem a poeira do seu desaparecimento
  
António Ramos Rosa
em "Génese (seguido de Constelações)"


*

Obra inclui:

1958 - O Grito Claro
1960 - Viagem Através duma Nebulosa
1961 - Voz Inicial
1961 - Sobre o Rosto da Terra
1963 - Ocupação do Espaço
1964 - Terrear
1966 - Estou Vivo e Escrevo Sol
1969 - A Construção do Corpo
1970 - Nos Seus Olhos de Silêncio
1972 - A Pedra Nua
1974 - Não Posso Adiar o Coração (vol.I, da Obra Poética)
1975 - Animal Olhar (vol.II, da Obra Poética)
1975 - Respirar a Sombra (vol.III, da Obra Poética)
1975 - Ciclo do Cavalo
1977 - Boca Incompleta
1977 - A Imagem
1978 - As Marcas no Deserto
1978 - A Nuvem Sobre a Página
1979 - Figurações
1979 - Círculo Aberto
1980 - O Incêndio dos Aspectos
1980 - Declives
1980 - Le Domaine Enchanté
1980 - Figura: Fragmentos
1980 - As Marcas do Deserto
1981 - O Centro na Distância
1982 - O Incerto Exacto
1983 - Quando o Inexorável
1983 - Gravitações
1984 - Dinâmica Subtil
1985 - Ficção
1985 - Mediadoras
1986 - Volante Verde
1986 - Vinte Poemas para Albano Martins
1986 - Clareiras
1987 - No Calcanhar do Vento
1988 - O Livro da Ignorância
1988 - O Deus Nu(lo)
1989 - Três Lições Materiais
1989 - Acordes
1989 - Duas Águas, Um Rio (com Casimiro de Brito)
1990 - O Não e o Sim
1990 - Facilidade do Ar
1990 - Estrias
1991 - A Rosa Esquerda
1991 - Oásis Branco
1992 - Pólen- Silêncio
1992 - As Armas Imprecisas
1992 - Clamores
1992 - Dezassete Poemas
1993 - Lâmpadas Com Alguns Insectos
1994 - O Teu Rosto
1994 - O Navio da Matéria
1995 - Três
1996 - Delta
1996 - Figuras Solares
1997 - À Mesa do Vento
1997- Versões/Inversões
1998- A Imobilidade Fulminante
1998- Facilidad del aire
2000- Pátria Soberana e Nova Ficção
2001- As Palavras
2001- Vagabundagem na Poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia. (Casimiro de Brito)
2001- O Aprendiz Secreto
2005 - Génese (seguido de Constelações)
.
Artigo de Sylvia Beirute
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2 comentários:

  1. Excelente trabalho este sobre Ramos Rosa
    Obrigado

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  2. Um artigo de crítica literária exemplar,que consegue exprimir o profundo sentido e significado da poesia de Ramos Rosa. Se balizarmos a leitura dos poemas de Ramos Rosa, através das referências analíticas de Sylvia Beirute, alargaremos o horizonte da nossa compreensão, saindo mais enriquecidos.

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