Escolhemos um incómodo estatuto,
meu amor: um pássaro incorrecto
(para poder voar) morrermos nele.
Mas gerámos alguns filhos eficazes,
ágeis, duradouros. Contemplando-os,
decorrem-nos tão céleres os dias,
nunca exactamente iguais,
nunca diferentes. É que
existe aquela máxima antiga
solidariamente jurada desde o início
de nossos compromissos:
Sê breve nas horas interiores,
mas por fora sê extenso, derramável
qual um rio. O fundamento do amor.
*
O amor visita o corpo,
o necessita. Lícito divaga
por sombrios lugares,
súbito rumorosos e a arder.
Romã, mentrastos - tantos cheiros
e sabores na docente,
digna espiral.
Tudo aberto em luz na câmara escura:
só porque dois mendigos alcançaram
uma migalha, seu
copo de vinho.
Amando. Ah, que intensos mil-
agres doces nos vêm do corpo.
Que incandescente aptidão.
*
Ora, não digam que não
basta o amor
para resgatar o tempo exausto.
Este acto minucioso,
esta sociedade
por que nos ficamos longamente
gratos e escorrendo.
Nem digam que o amor
é arbitrário:
ele elege e fere
doméstico
quem morre de ferir. Que sorte
(digam antes) esta esgrima, este estar
em tantas posições de gritar.
*
Eis contíguos estes corpos,
derramados. A mecânica exacta,
inflexível. As nuvens
encasteladas, prometendo a chuva.
É um limpo exercício, podem crer.
De que fonte o maná mana,
rescendente? Onde a séde da sede?
No corpo se instalam
gratas ocorrências a não
negligenciar; a nunca
renegar - a menos que os
castos dias se avizinhem (pobres coisas,
lentos animais insusceptíveis:
vede o que o tempo faz de nós!)
*
Tens duas mãos capazes de lutar.
Digo: redondamente.
Digo: pelo tacto. Ah,
que guerra honesta podias conduzir
só pelas mãos
noutras mãos
guerreiras. Digo:
mãos com frutos. Há
guerra e guerra. Para bellum
com porções adequadas
do teu corpo. Si vis pacem,
preenchimento pacífico
do tempo. Digo: a
toda a largura do dia.
*
Agora o resto: imagina
corpo contra corpo,
não apenas as mãos, mas já também
a boca esguia, fugitiva,
regressada à boca.
A boca, a broca: a prudente
(intro) missão. Digo: a in(de)cisão.
A guerra em campo aberto.
Até que o suor. Eis o inimigo
liquidado e dado. Percorrido em guerra.
Digo: inguerra, acto
inverso de matar. Por
que esperas, pára a paz,
para bellum.
A.M. Pires Cabral
em Artes Marginais,
Guimarães Editores, 1998
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A. M. Pires Cabral nasceu em 1941 na freguesia de Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes. Licenciou-se em Filologia Germânica na Universidade de Coimbra, foi professor do Ensino Secundário em Vila Real, animador cultural e co-organizador das Jornadas Camilianas. Publicou poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica. Ganhou o Prémio Círculo de Leitores e o Prémio D. Diniz, da Fundação da Casa de Mateus, com o livro de poesia Douro: pizzicato e chula, também publicado pelos Livros Cotovia.
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