EU VI
Eu vi
Vi os comboios silenciosos os comboios negros que
vinham do Extremo-Oriente e que passavam como
fantasmas
E o meu olhar, como a lanterna da retaguarda, corre
ainda atrás desses comboios
Em Talga 100 000 feridos agonizavam por falta
de cuidados
Visitei os hospitais de Krasnõiarsk
E em Khi!ok cruzámos com um longo comboio de
soldados loucos
Vi nos lazaretos chagas abertas feridas que
sangravam a jorros.
E os membros amputados dançavam em volta
ou levantavam voo no ar roufenho
O incêndio estava em todos os rostos em todos
os corações
Dedos idiotas tamborilavam em todos os vidros
E sob a pressão do medo os olhares rebentavam
como abcessos
Em todas as estações deitavam fogo aos vagões
E vi
Vi comboios de 60 locomotivas que se escapavam
a todo o vapor perseguidas pelos horizontes
com cio e bandos de corvos que voavam
desesperadamente atrás,
Desaparecer
Na direcção de Porto-Artur.
Em Tchita tivemos alguns dias de descanso
Paragem de cinco dias devido a obstáculos da linha
Passámo-los em casa do Senhor lankéléwitch, que
queria dar-me em casamento a sua filha única.
Depois o comboio tornou a partir.
Agora era eu que me sentara ao piano e tinha dores
de dentes
Revejo quando quero esse interior calmo a loja do pai
e os olhos da filha que vinha à noite para a minha cama
Moussorgsky
E os lieder de Hugo Wolf
E as areias do Gobi
E em Khaïlar uma caravana de camelos brancos
Creio bem que estive bêbedo durante mais de
500 quilómetros
Mas eu estava ao piano e foi tudo quanto vi
Quando se viaja deviam-se fechar os olhos
Dormir
Gostaria tanto de dormir
Reconheço todos os países de olhos fechados pelo
seu odor
E reconheço todos os comboios pelo barulho que
fazem
Os comboios da Europa são a quatro tempos enquanto
os da Ásia são a cinco ou a sete
Outros seguem em surdina são canções de embalar
E há os que no ruído monótono das rodas me lembram
a prosa pesada de Maeterlinck
Decifrei todos os textos confusos das rodas e reuni
os elementos dispersos duma violenta beleza
Que eu possuo
E me força.
Tsitsika e Kharbine
Não vou mais longe
É a última estação
Desembarquei em Kharbine quando acabavam
de deitar fogo às instalações da Cruz Vermelha.
Ó Paris
Grande lareira ardente com os tições entrecruzados
das tuas ruas e velhas casas que se debruçam
por cima e se aquecem
Como os avós
E eis os anúncios, vermelho, verde, multicolores como
o meu passado em resumo amarelo
Amarela a cor altiva dos romances da França
no estrangeiro.
Nas grandes cidades gosto de me meter nos
autocarros em andamento
Os da linha Saint-Germain-Montmartre levam-me
ao assalto da Butte
Os motores mugem como touros de ouro
As vacas do crepúsculo pastam o Sacré-Coeur
Ó Paris
Estação central cais das vontades cruzamento das
inquietações
Só os droguistas têm ainda um pouco de luz por cima
das portas
A Companhia Internacional das Carruagem-Camas
e dos Grandes Expressos Europeus enviou-me
um prospecto
É a mais bela igreja do mundo
Tenho amigos que me rodeiam como barreiras
Têm medo quando eu parto que nunca mais volte
Todas as mulheres que conheci erguem-se
nos horizontes
Com gestos lastimosos e olhares tristes de semáforos
à chuva
Bela, Inês, Catarina e a mãe ‘do meu filho na Itália
E ainda a mãe do meu amor na América
Há gritos de sirene que me rasgam a alma
Na Manchúria um ventre estremece ainda como num
parto
Gostaria
Gostaria de nunca ter feito as minhas viagens
Esta noite um grande amor atormenta-me
E contra a minha vontade penso na jovem Joana
de França.
Foi numa noite de tristeza que escrevi este poema
em sua honra
Joana
A jovem prostituta
Estou triste estou triste
Irei ao Lapin Agile recordar-me da minha juventude
perdida
E beber copinhos
Depois voltarei sozinho para casa
Paris
Cidade da Torre única da enorme Forca e da Roda
do Suplício
Paris, 1913
Blaise Cendrars
Poesia em Viagem
Assírio & Alvim, 2005
Tradução de Liberto Cruz
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