Da Verdade não Quero Mais que a Vida
Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.
Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.
Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
Cumpre-te Hoje, não Esperando
Não queiras, Lídia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não 'sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
Temo, Lídia, o Destino. Nada é Certo
Temo, Lídia, o destino. Nada é certo.
Em qualquer hora pode suceder-nos
O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é estranho o passo
Que próprio damos. Graves numes guardam
As lindas do que é uso.
Não somos deuses; cegos, receemos,
E a parca dada vida anteponhamos
À novidade, abismo.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
Não só quem nos odeia e nos inveja
Não só quem nos odeia e nos inveja
Nos limita e oprime. Quem nos ama
Não menos nos limita
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; Quem quer nada
É livre; Quem não tem e não deseja,
Homem, é igual aos deuses
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
Colhe o Dia, porque És Ele
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
O Erro de Querer Ser Igual a Alguém
Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz em suma — quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
Não Sejamos Inteiros numa Fé talvez sem Causa
Meu gesto que destrói
A mole das formigas,
Tomá-lo-ão elas por de um ser divino;
Mas eu não sou divino para mim.
Assim talvez os deuses
Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Tirem o serem deuses para nós.
Seja qual for o certo,
Mesmo para com esses
Que cremos serem deuses, não sejamos
Inteiros numa fé talvez sem causa.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
*
Aos Deuses Peço só que me Concedam o Nada lhes Pedir
Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir.
A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
Têm prazer ou dores.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
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