A HISTÓRIA DA MORAL
Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.
Alexandre O'Neill
Poesias Completas
Assírio & Alvim, 2000
*
ESQUERDIREITA
A esquerda da minoria da direita a maioria
Do centro espia a minoria
Da maioria de esquerda
Pronta a somar-se a ela
Para minimizar
Numa centrista maioria
Mas a esquerda esquerda não deixa.
Está à espreita
De uma direita, a extrema,
Que objectivamente é aliada
Da extrema-esquerda.
Entretanto
Extra-parlamentar (quase)
O Poder Popular
Vai reactivar-se, se...
Das cúpulas (pfff!) nem vale a pena
Falar, que hão-de
Pular!
Quanto à maioria de esquerda
Ficará – se ficar – para outro poema...
Alexandre O´Neill
Anos 70 – Poemas Dispersos
Assírio & Alvim, 2005
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POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O'Neill
Poesias Completas
Assírio & Alvim, 2000
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CHAVAL
Entre o Bem e o Mal,
cresce a borbulha na cara do chaval.
O chaval ainda não sabe
que a barba, bem ou mal
feita, é uma banalidade
matinal.
Alexandre O´Neill
Poesias completas
Assírio & Alvim, 2000
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FALA
Fala a sério e fala no gozo
Fá-la p’la calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala franciú fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância muita e devagar.
Alexandre O´Neill
Tomai lá do O'Neill - uma antologia
Círculo de Leitores, 1986
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E DE NOVO, LISBOA...
E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.
Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.
Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?
Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
Alexandre O'Neill
Poesias Completas
Assírio & Alvim, 2000
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A UM POETA QUE DEIXOU DE COMPARECER NAS ANTOLOGIAS
Tinha de suceder deixares de suceder
a ti próprio.
Já Bocage não és? - claro! -
e quem sabe se alguma vez o foste?
Digo-te mais : nunca o serás,
nem apocrifamente.
Não almejavas tanto?
Bravo, rapaz, parece que caíste
em ti!
Como queres que uma antologia se acrescente
sem, tarde ou cedo, se diminuir?
Sabes por que se diz « gemem os prelos»?
Não penses que é por ti.
Sê razoável!
Teus versos hão-de espiritualizar muita família.
Entre netos, uma velha senhora esquecerá a meio
um soneto dos teus.
Se a sorte não te for de todo adversa,
Um lusófilo, algures,
citará entre barras versos da tua lavra
numa elegante nota de rodapé.
Alexandre O'Neill
Poesias Completas
Assírio & Alvim, 2000
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O TABACO DA VIDA
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
dei a volta ao coração (demorei anos):
está só – mas sem nenhuma vontade de parar…
Desiludidos? Paciência, amigos…
Bebamos mais, fumemos, refumemos,
entre as mulheres, o tabaco da vida.
Como cedilhas pendurados que felizes seremos,
exemplares cretinos nesta noite comprida…
Alexandre O'Neill
Poesias Completas
Assírio & Alvim, 2000
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AOS VINDOUROS SE OS HOUVER
Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;
que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;
computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;
que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.
Alexandre O'Neill
Poemas com endereço
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CANÇÃO
Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito
E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece
E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
- mas que saiam de joelhos
E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem
Alexandre O'Neill
Poesias Completas
Assírio & Alvim, 2000
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Poemas de encantadora acidez. Obrigada por partilhar.
ResponderEliminarAbraços
PAZ e LUZ