DO LIVRO DO ÊXODO
O deserto alongava-se até à idade
De uma geração
Nós éramos a única planta das areias
A partida contínua e adiada. Quantos
E quantos passos não estivemos descalços
Procurando nos pés gretados a nesga
Para o regresso
As crianças perguntavam o que era a nata e o leite
Perguntavam se as mães eram semelhantes aos favos
As mulheres calculavam em pensamento
A altura que teriam os filhos entre as árvores
Quando chegassem à terra distante do mel
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
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2.
Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia
Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio
A minha casa - ela própria dava flor
Ela riscava nas folhas
Ela era grande mesmo quando a magnólia não crescia
Esta magnólia não é como a dela uma magnólia pronunciada
É uma magnólia de verdade a todo o redor - maior
E mais bonita do que a palavra.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
*
Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes das visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito nos olhos cobertos
Por escamas
Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas
Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver
Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado
E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre como Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
*
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
*
1
Acordei com as narinas a sangrar perfume
Como um santo quando acaba de morrer
E debrucei-me para dentro
Para encontrar o golpe no sono.
Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros
Que quebrava vasilhas de barro.
Disse-lhe: bebe do meu sangue.
Ela rasgou-me as veias com cacos
E deu de beber aos pássaros.
2
Acordei também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos seus vestidos
E disse: para que lhes espetas a agulhas no coração
Ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo.
3
Ela pôs-me o dedal sobre os olhos
Um vaso pequenino com que me ministrou o sono
Apagou em mim os instintos da caça.
Estou ferido nas narinas e nos pulmões,
Digo-lhe: sufoco.
Ela ordenou que os pássaros batessem as asas
E fez circular o ar.
4
Acordei dentro do poço
Do ar
E soube que podia respirar dentro da água
Porque a mulher estava cercada de peixes.
Disse-lhe: porque quebras aquários contra os joelhos?
Ela mastigava e não me respondeu,
Estendeu a mão e deu-me um vidro a provar
5
Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar:
A mulher era uma ilha de todos os lados
Na sua força de um redemoinho parado
6
Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca,
Espetou-me um anzol na língua e puxou-me
As palavras
Foi então que pensei que ia morrer
Afogado.
7
Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo
Com a boca cheia de búzios em forma de palavras.
Soube que era possível respirar dentro das palavras
Porque vi a mulher pôr as mãos sobre os ouvidos.
Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear.
8
E eu disse à mulher: destece-me
Até que alguma coisa me pense para dentro
Como se alguém me chamasse
Como se badalasse um sino ao redor
Dentro de mim.
A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio — disse —
Dos teus novelos.
9
Assemelhei-me a um xilofone de silêncio
A um estrondo muito forte que só se ouvia bem em silêncio.
Gritei: então canta!
Ela pegou a minha tristeza e começou a dobar.
10
Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço
E disse: é agora que vou descer.
Acordei no meio da descida e pensei:
Ah, quem dera a mulher lançasse a sua trança
A prumo.
11
A mulher lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão
Para me guardares
12
A mulher guardou-me no útero
E eu vi quanta morte existe ao redor de quem nasce.
Perguntei à mulher: porque estás de luto?
Ela abriu o regaço e vi como nas fotografias do holocausto
Exatamente como nas manhãs depois dos terremotos
Cadáveres e cadáveres de peixes e pássaros
13
Acordei com os olhos comidos como um corpo depois de sepultado
E gritei para fora do poço: existe alguém desse lado?
Eu estava no fundo, eu estava morto e vi
Que os peixes e os pássaros
Ressuscitavam.
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições
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Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar
Daniel Faria
Poesia
Quasi Edições
Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, em 1971. Frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – Porto, tendo defendido a tese de licenciatura em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia criou gosto por entender a poesia e dialogar com a expressão contemporânea. Licenciou-se em Estudos Portugueses na faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante esse período (1994 - 1998) a opção monástica criava solidez. A partir de 1990, e durante vários anos, esteve ligado à paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses. Aí demonstrou o seu enorme potencial de sensibilidade criativa encenando, com poucos recursos, As Artimanhas de Scapan e o Auto da Barca do Inferno. Faleceu a 9 de Junho de 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.
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