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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

EUGÉNIO DE ANDRADE: POEMAS, POESIA, ANÁLISE CRÍTICA, BIOGRAFIA, OBRA POÉTICA



















sb: série poetas

EUGÉNIO DE ANDRADE

A obra poética de Eugénio de Andrade é lida a partir de uma participação intensiva do sujeito que a expressa, do esgotamento progressivo dos gestos, da racional incompreensão da disciplina do mundo. É uma poesia emocional nos seus elementos mais catalisadores, sendo que Andrade cria por vezes as condições para que haja uma instalação da ausência, da saudade, do lamento e desassossego, guiando por aí o seu fôlego, a sua interferência mais heterodoxa e intervenção mais inquietante. Ao contrário de poetas como Herberto Helder, Leonard Cohen ou Ferreira Gullar, não existe no poeta um desnível entre metáforas e imagens, no sentido de distanciamento entre estas. Pelo contrário, fazendo uso de um ritmo crescente e quase silencioso, os poemas de Eugénio de Andrade são uma construção com materiais que são base segura para outros, e assim sucessivamente. Mas isso não quer dizer previsibilidade. É sim um natural cantar de emoções que descendem umas das outras e que  se organizam no espaço rítmico do corpo do poema, na integração do mesmo nas mãos intuitivas da verbalização. Daí haver nesta poesia muito de contemplativo, de significado dos olhos circulantes, ora pelo exterior das (in)cumplicidades, ora pelo interior dorido de uma estética de circunstância autenticamente vivida.
Por outra banda, há no poeta Eugénio de Andrade uma interessante dicotomia entre palavra e silêncio, sendo que aquela se apresenta, face ao todo do corpo poético, como uma peculiar forma de silêncio. No poema "Sobre a palavra" isso é bem visível quando se lê "Entre a folha branca e o gume do olhar / a boca envelhece / Sobre a palavra / a noite aproxima-se da chama / Assim se morre dizias tu / Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura / Na porosa fronteira do silêncio / a mão ilumina a terra inacabada / Interminavelmente". Neste poema, como em muitos outros, a palavra é como que um recorte do silêncio eterno, a cauda de um arquipélago que se afasta no mar parado de uma vida.  Como eu digo no meu poema "Arte Anfíbia", escrever poesia é a arte de não dividir palavras com o seu leitor. E nunca o teria escrito se não fosse com poetas como Eugénio de Andrade no pensamento; poetas que efectivamente dispõem as suas palavras nos textos, as deixam no seu legado, sem contudo as dividirem com quem lê; dividirem no sentido de perda de individualidade, de as mesmas se colocarem plenamente alcançáveis  no íntimo de terceiros, de o poema pertencer ao leitor. E assim, parece-me, é bem mais desafiante para quem aprecia a arte dos versos. 

Poemas seleccionados:


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
.
Eugénio de Andrade
em Poesia e Prosa
.
*

POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
.
Eugénio de Andrade

em Os Amantes Sem Dinheiro

*
.
NÃO CANTO PORQUE SONHO
Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinha.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade
em As Mãos e os Frutos
.
*
 .
AS PALAVRAS INTERDITAS
.
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade
em Poesia e Prosa
.
*
.
O SILÊNCIO 

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.
.
Eugénio de Andrade
em Obscuro Domínio
.
*
.
O AMOR
.
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.
.
Eugénio de Andrade
in Obscuro Domínio
.
*
.
URGENTEMENTE
.
É urgente o amor
É urgente um barco no mar

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
.
Eugénio de Andrade
em Até Amanhã
.
*
.
CORAÇÃO HABITADO

Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
.
Eugénio de Andrade
em Até Amanhã
.
*
.
DESDE A AURORA
.
Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,

entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:

vai entrar o vento ou o violento
aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:

é tempo de colher: a noite
iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.

Sou eu, desde a aurora,
eu — a terra — que te procuro.
.
Eugénio de Andrade
em Obscuro Domínio
.
*
LABIRINTO OU ALGUNS LUGARES DO AMOR
.
O outono
por assim dizer
                   pois era verão
forrado de agulhas

a cal
rumorosa
do sol dos cardos

sem outras mãos que lentas barcas
vai-se aproximando a água

a nudez do vidro
a luz
a prumo dos mastros

os prados matinais
os pés
verdes quase

o brilho
das magnólias
apertado nos dentes

uma espécie de tumulto
as unhas
tão fatigadas dos dedos

o bosque abre-se beijo a beijo
                                        e é branco
.
Eugénio de Andrade
em Véspera da Água
.
*
.
AS PALAVRAS
.
São como cristal, as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras, orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes, leves.
Tecidas são de luz e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta?
Quem as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
.
Eugénio de Andrade
em Poesia e Prosa
.

Biobibliografia (Fonte: Fundação Eugénio de Andrade)

A cidade [Porto] deve ter sido sensível a tal escolha, pois fê-lo cidadão honorário, concedendo-lhe por duas vezes a sua medalha de ouro. Eugénio de Andrade nasceu em Povoa de Atalaia (Fundão), a 19 de Janeiro de 1923. A família que lhe coube em sorte vai de camponeses abastados a mestres de obras, que, nos primeiros anos do século, nada tinham de parecido com os actuais - portanto gente que trabalhava a terra e a pedra. Mas será a mãe, com quem emigra aos sete anos, primeiro para Castelo Branco e um ano depois para Lisboa, a figura tutelar e poética da sua vida, como todo o leitor da sua poesia sabe. (A mãe, o falar materno, "o quente de uma vida infantil muito perto da natureza mais elementar", virão a desempenhar um papel central na sua poesia). Em Lisboa vai viver e estudar, com um interregno de 43 a 46 em Coimbra, até finais dos anos 50. Em 1947, ingressa nos quadros dos Serviços Médico-Sociais, do Ministério da Saúde, onde desempenhará durante 35 anos a mesma função - a de inspector administrativo - por sempre se ter recusado a fazer concursos de promoção. A sua transferência para o Porto, por razões de serviço, deu-se em Dezembro de 1950. Apesar do seu prestígio (Eugénio de Andrade é dos nossos raros escritores com repercussão internacional, com os seus 55 títulos traduzidos, e cuja obra, entre nós, tem conhecido sucessivas reedições), viveu sempre extremamente distanciado do que se chama vida social, literária  ou mundana, avesso à comunicação social, arredado de encontros, colóquios, congressos, etc., e as suas raras aparições em público devem-se a «essa debilidade  do coração, que é a amizade», devendo encarar do mesmo modo o facto de ser membro da Academia Mallarmé, de Paris. Cabe aqui referir que nunca concorreu aos prémios que lhe foram atribuídos, quer em Portugal ou na França, quer no Brasil ou na Jugoslávia, como nunca ninguém o viu usar qualquer insígnia das condecorações com que foi agraciado. A obra de Eugénio de Andrade, escrita ao longo dos últimos 50 anos, tem início em 1942 com Adolescente, livro hoje renegado, tal como  Pureza, de 45, dos quais fez mais tarde uma breve selecção que designou por Primeiros Poemas (77), é constituída, principalmente pelos seguintes títulos de poesia: As Mãos e os Frutos (48), Os Amantes sem Dinheiro (50), As Palavras Interditas (51), Ate Amanhã (56), Coração do Dia (58), Mar de Setembro (61), Ostinato  Rigore (64), Obscuro Domínio (72), Véspera de Água (73), Escrita da terra (74), Limiar doa Pássaros (76), Memória Doutro Rio (78), Matéria Solar (80), O Outro Nome da Terra (88), Rente ao Dizer (92), Oficio da Paciência (94), O Sal da Língua (95), Pequeno Formato (97), Os Lugares do Lume (98), Os Sulcos da Sede (2001); de prosa: Os Afluentes do Silêncio (68), Rosto Precário (79), À Sombra da Memória (93); para crianças: História da Égua Branca (77), Aquela Nuvem e Outras (86). Traduziu principalmente Safo, Garcia Lorca e Cartas Portuguesas, tendo ainda organizado algumas antologias, quase todas sobre a terra Portuguesa, caracterizadas pela ausência de preconceitos e sectarismos literários, das quais se destacam: Daqui Houve Nome Portugal, Memórias de Alegria, Canção do Mais Alto Rio, Poesia  - Terra da Minha Mãe, os últimos com  a colaboração do fotógrafo Dario Gonçalves, A Cidade de  Garrett, com desenhos de Fernando Lanhas, e Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Traduzido em cerca de 20 línguas, a poesia de Eugénio de Andrade tem sido estudada e comentada por, entre outros, Vitorino Nemésio, João Gaspar Simões, Óscar Lopes, António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, Eduardo  Prado Coelho, Arnaldo Saraiva,  Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Pinto do Amaral, Luís Miguel Nava, Angel Crespo, Carlos V. Cattaneo, e suscitado o interesse de vários músicos, entre os quais Fernando Lopes-Graça, Jorge Peixinho, Filipe Pires, Clotilde Rosa, Mário Laginhas e Paulo Maria Rodrigues. Viveu no Porto - de que foi cidadão honorário e onde foi criada uma Fundação com o seu nome - até a sua morte a 13 de Junho de 2005.

PRÉMIOS, MEDALHAS,
CONDECORAÇÕES, ACADEMIAS

PRÉMIOS

PEN Clube (1984) Associação Internacional de Críticos Literários (1986); Dom Dinis (1988); Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989); Jean Malrieu (França, 1989); APCA (Brasil, 1991); Prémio Europeu de Poesia da Comunidade de Vachatz (República da Jugoslávia, 1996); Prémio Celso Emílio Ferreira (2000); Prémio Estremadura (2000); Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (2000); Prémio Camões (2001); Prémio Poesia do PenClub (2002). Prémio da Revista "Poesia e Homem" de Cantão (China) - 2004.

CONDECORAÇÕES

Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago e Espada (1982); Grã-Cruz da Ordem de Mérito (1988)

MEDALHAS

MEDALHA DE Mérito da Cidade do Porto (1985); Medalha de Oiro do Concelho de Oeiras (1988); Medalha de Honra da cidade do Porto (1989) Medalha da Cidade de Bordéus (1990); Medalha de Oiro de Mérito Municipal da Câmara do  Fundão (1991); Medalha da Universidade de Michel de Montagne, Bordéus (Maio 2001).


ACADEMIAS

Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Março 2005); Membro da Academia Mallarmé (Paris); Membro Fundador da Academia Internacional “Mihai Eminescu” (Roménia); Membro Titular da Academia Mondiale della Poesia.
.
Artigo de Sylvia Beirute

.;

1 comentário:

  1. A poesia de Eugénio de Andrade é um conjunto de palavras lapidadas pela respiração da sua transparência e pela simplicidade da sua acutilância no repuxo das madrugadas claras e das saudades vividas (a mãe). Vide "As Mãos e os Frutos".
    Jorge Manuel Brasil Mesquita
    Lisboa, 14/12/2010

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